segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

MÓRBIDO

Posso dizer que a vida nunca foi fácil para mim. Não me faço de vítima nem busco culpados para o meu destino. Tudo o que sei sobre mim, ninguém me contou. Minhas memórias insistem em me torturar, e mesmo que os bons e raros momentos tenham existido, tudo de que me lembro é: dor e perda. Quando as pessoas me olham não entendem o motivo de carregar em meu rosto uma expressão perdida. Também já faz tempo que perdi o interesse em responder a essas perguntas idiotas.
Hoje não posso mais voltar no tempo e mudar as minhas escolhas, muito menos as escolhas de outrem. Decidi fazer isso há muito tempo, e agora irei até o fim, por mais que eu tenha medo do que possivelmente encontrarei, é tarde. Minhas mãos já estão sujas de sangue, o cheiro dos corpos impregna minhas roupas, minha casa aprisiona almas atormentadas devido as minhas incursões noturnas.
Lembro-me de quando minha mãe morreu. Depois de tudo consumado, e de seu corpo abruptamente "guardado" em uma gaveta funerária, eu permanecia inerte. Meus pensamentos absortos vagavam dentro da gaveta e me perguntava; como ela estaria se sentindo ali? A raiva me dominava e meu impulso de abrir o caixão e tirá-la de dentro era detido no último segundo. Eu sempre a visitava, e o pensamento mórbido me acompanhava. Perguntava-me como ela estaria, seu corpo estaria já apodrecido? A aparência cadavérica já seria uma marca? Ficava em frente a sua gaveta e pensava que tudo o que ela havia sido não passava agora de uma massa inerte, apodrecendo, devorada, solitária.
Depois de alguns anos, seu corpo foi retirado, e tudo o que restara foi transportado dentro de um saco preto. Ossos e pó, cinzas e resto.
Nessa época eu ainda acreditava nos homens, e talvez por esse motivo tenha continuado minha vida pacata, cinza e vazia. A morbidez havia me deixado respirar, já não pensava com tanta frequência no corpo de minha mãe, ou no que sobrara dele.
Acredito que o determinismo em minha vida é inabalável, eles teriam que me deixar.
Meu pai assim como minha mãe, e como todos nós, colheu o resultado de suas péssimas decisões, e lá eu me encontrava novamente, em frente a um caixão decorado. Olhando para seu corpo pela derradeira vez e lutando com minha memória para que ela armazenasse a imagem que eu enxergava. Olhava para seu corpo e os terríveis pensamentos chegavam como em ondas. Já conseguia imaginar tudo destruído, os dedos a se desmancharem, as mãos cadavéricas cruzadas por sobre o ventre que regurgitava o sangue frio que se decompunha. Sou a única pessoa que pensa coisas assim? Talvez não, mas tudo o que tenho feito me transformou em uma aberração.
E da mesma forma como acontecera com minha mãe, eu insistia em visitar o corpo de meu pai. E parado em frente a sua tumba, meus pensamentos penetravam a tampa de pedra, e me contavam o que viam. A decomposição me torturava, e a impotência de não poder pará-la me enraivecia. Mortos. Só isso, era tudo o que eles eram, mortos.
Tudo foi tirado de mim. E ali em frente à imagem de um Cristo feito de bronze, que ironicamente estava de braços abertos, decidi não me entregar. A morte seria manipulada.

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