domingo, 1 de fevereiro de 2015

A TUMBA - Lovecraft

O mundo invisível permeia a realidade humana. Mas, o que seria a realidade humana? Os valores apregoados por determinada sociedade em determinado recorte no tempo são os critérios que definem o que é verossímil daquilo que não é, pelo menos naquele momento.
O que faz com que os homens compartilhem da mesma visão de realidade? São considerações muito subjetivas que compõem os critérios do mundo considerado racional. Pois parte-se do princípio de que a racionalidade deva compor a realidade em que todos estão inevitavelmente inseridos.
Mas como considerar o que é racional? E mesmo quando este é considerado pergunta-se: racional para quem? Quando? Por quê? São justamente esses os questionamentos que não permitem que essa realidade seja imutável, são esses os argumentos que possibilitam que o real seja o ponto de vista de cada indivíduo, o mínimo matiz deve ser considerado, pois a realidade de outrem é apenas uma parte desse invisível que a todos os homens cerca.
O que os olhos veem é o mesmo que a mente vê? O que um homem vê em um quarto escuro é o mesmo que uma criança vê? Provavelmente não. Cada indivíduo parte do seu contexto, das suas experiências e das suas expectativas. Somos ímpares, portanto a realidade humana pode estar fragmentada de sentidos.
As possibilidades compõem o universo, ainda mais quando esse universo é o universo literário. As possibilidades no mundo do imaginário criam sua própria estrutura de realidade, pois o real passa a ser aquilo que o leitor permita que seja. O que aceitar ou não como fator constituinte de determinada história passa pelo crivo do leitor, por sua capacidade e/ou facilidade em compor seu próprio mundo. A obra literária é um diálogo, não é um monólogo em que só a voz do autor se faz presente. Pelo contrário, a obra literária é um diálogo com o leitor, um contrato, uma construção que só se concretiza quando há comprometimento.

“Não existe uma distinção clara entre o real e o irreal; todas as coisas se manifestam do seu jeito apenas graças aos canais físicos e mentais por meio dos quais nós nos tornamos conscientes delas,” disse Jervas Dudley, personagem de H.P. Lovecraft no conto “A Tumba”. As ideias do autor na voz de sua personagem apontam o caminho que essa narrativa irá percorrer. Essas poucas palavras são os indícios de uma marca literária a qual buscamos identificar, um gênero capaz de agir no imaginário do leitor como nenhum outro gênero literário o pode fazer. A incitação da dúvida cria, enfim, a literatura fantástica.

Howard Phillips Lovecraft nasceu em 1890 na região da Nova Inglaterra, na cidade de Providence em Rhode Island e faleceu em 1937. Muitos críticos consideram H.P. Lovecraft um dos escritores de terror de maior influência no século XX. Destacou-se por seus contos de horror que apresentam também traços de ficção científica, tornando-se um dos precursores dessa temática nos Estados Unidos.
Como a maioria dos escritores, Lovecraft alcançou a fama depois de sua morte, mas ainda em vida pode desfrutar de um público diminuto que o admirava. Além de escrever contos e histórias de horror, o autor também produziu crítica literária, sendo um dos primeiros a apresentar uma proposta de estudo ao gênero fantástico na literatura. Em sua obra conhecida como O horror sobrenatural na literatura publicada em 1945, mas escrita em 1927, o autor define a literatura fantástica como aquela capaz de suscitar o medo, mais especificamente o medo do desconhecido no leitor. Dessa forma, o autor depositava no leitor implícito a responsabilidade de gerar tal sentimento.

A Tumba narra a história de um jovem que, supostamente, enlouqueceu depois que alguns eventos “fantásticos” ocorreram em sua vida. O conto é narrado em primeira pessoa e a forma como é apresentado torna leitor e narrador uma única entidade, pois é possível colocar-se diretamente na posição daquele que narra e analisar sua argumentação dentro da perspectiva desse narrador.
Jervas Dudley é quem narra sua história, a personagem narra os fatos desde a infância, contando onde nasceu, onde morou, quais eram seus hábitos desde menino. A ambientação também está presente, o narrador descreve a região que habitava, sua casa, mas detêm-se mais na descrição do cenário onde ocorreria a maior parte da história, ou seja, na antiga tumba da família.
A história narrada vai acontecendo aos poucos, Jervas Dudley narra fatos isolados da infância e da adolescência que só posteriormente completarão o sentido da obra. Desde tenra idade o narrador sente curiosidade em desvendar os segredos daquela tumba antiga presente na propriedade da família. Tumba essa “encontrada” ao acaso por ele e que possui uma lenda a envolvê-la. A antiga família, que morava na propriedade, morreu em um grave incêndio. A mansão que se tornou uma ruína antiga fora queimada. As causas do incêndio ainda são um mistério, mas o que se conta é que nenhum dos habitantes sobreviveu, todos morreram de forma misteriosa nesse incêndio. Conforme os anos passavam o menino, que passa a ser um rapaz, alimentava o desejo de adentrar aquela tumba e descobrir o que ela guarda.
A tumba não estava aberta, havia uma corrente muito grossa com um cadeado a fechar sua entrada. Jervas nunca conseguia ultrapassar aquela barreira, o máximo que conseguiu foi esticar um braço para dentro das grades segurando uma vela. O que viu deixou-o ainda mais intrigado, pois uma escadaria surgiu levemente iluminada pela chama da vela.
Todas as experiências narradas vão construindo a tensão na narrativa, o envolvimento do leitor vai se adensando, à medida que os fatos vão acontecendo leitor e narrador aproximam-se cada vez mais. A descoberta de um vínculo genealógico com a tumba antiga deixa o narrador ainda mais convencido da necessidade de adentrar naquele lugar. Depois desse ocorrido, a intensidade da narrativa se modifica, há uma obsessão por parte de narrador em desvendar o mistério que o assombra desde a infância. Sensações e sentimentos tornam-se mais frequentes, apresentando uma tênue fronteira entre a realidade e a fantasia da personagem.

À medida que a tensão aumenta, em que a dúvida é cada vez mais verossímil, o fantástico ganha vida e, como um ser animado, ganha um corpo e torna-se quase que palpável ao leitor. A capacidade do autor em estimular no leitor essa sensação deve ser enaltecida. Manter essa tensão ao longo do texto requer habilidade e humanidade. A humanidade está diretamente com a percepção do autor em saber que tipo de história será capaz de tal intento. Mas não é só saber o tipo de história que poderá criar o fantástico, é preciso dominar a arte da palavra, selecionando vocábulos adequados e, como um arquiteto, manejar as estruturas de uma forma que prendam o leitor e o direcione à proposta almejada.

Observando o texto de Lovecraft nota-se que essa “arquitetura” inicia-se nas primeiras linhas. A escolha do narrador em primeira pessoa já aproxima muito o leitor dessa personagem. A perspectiva apresentada é a perspectiva desse narrador, que tomando para si a palavra direciona as atenções para onde quer e subjuga o leitor a acompanha-lo em suas elucubrações. O inicio do texto já em um indício do que se pode esperar do conto: “Ao narrar as circunstancias que levaram ao meu confinamento dentro deste asilo para loucos, tenho consciência de que minha situação atual vai criar uma dúvida natural sobre a autenticidade desta narrativa.”
Percebe-se nesse breve trecho a intenção de Lovecraft em sugestionar a dúvida ao leitor. É nessa incerteza que ocorre o fantástico, pois esse é a hesitação experimentada por um ser que conhece apenas as leis da natureza, em face de um acontecimento aparentemente sobrenatural (TODOROV, 1975, p. 31). O limite entre acreditar ou não é o que cria o fantástico, que lhe dá vida. A hesitação do leitor é uma condição do fantástico.

Pode-se perceber que Lovecraft figura entre o gênero como um dos principais autores. Deteve-se em um fantástico voltado às temáticas do sobrenatural, da morte, da ficção científica. Mesmo conseguindo reconhecimento apenas póstumo, deve ser visto como autor de destaque dentro do gênero fantástico, pois conseguiu por meio de suas obras cumprir com o papel ao qual se propôs. Tendo vista que esse gênero literário é um ramo estreito, mas essencial da expressão humana que atrairá uma audiência limitada dotada de uma sensibilidade especial (LOVECRAFT, 1973, p.105).

Referências:
LOVECRAFT, H.P. A TUMBA e outras histórias. Porto Alegre, L&PM, 2007.
LOVECRAFT, H.P. O Horror Sobrenatural na Literatura. R.J., Francisco Alves, 1973.

TODOROV, T. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo, Perspectiva S.A., 1975.

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