segunda-feira, 26 de setembro de 2011

CRYSTAL LAKE

A superfície do lago assemelhava-se a um espelho. Refletindo algumas nuvens perdidas no céu e os pássaros, que fugidios rompiam o silêncio acomodando-se em seus ninhos no final da tarde. Sentada no deck próximo a cabana de sua família Suse acompanhava o desfecho do dia, olhar preso no horizonte, acompanhava a despedida do sol, que majestosamente desaparecia.
A água estaria fria? A curiosidade era instigante, e tocando levemente os pés na água arrepiou-se com a temperatura, estava fria. Ainda assim era prazeroso, e com um pouco mais de vontade ela arriscou sentir a água tocar-lhe até os joelhos. Arrepiou-se novamente, mas sentia-se bem, o frio da água equilibrava-se com o sangue quente em seu corpo.
Com as mãos apoiadas um pouco atrás do corpo, e chacoalhando os pés Suse inclinou a cabeça para trás, olhos fechados, um sorriso quase tímido marcou seu rosto. O sol já havia partido, era hora de voltar.
Suse tirava os pés da água, quando sentiu que algo passava perto de suas pernas dentro do lago. Assustou-se, e com um traço de desespero puxou as pernas para cima do deck. Seu coração acelerado, e os olhos assustados com certa distância procuravam o motivo de seu susto. Mas as águas já estavam escuras devido ao avançar do tempo, Suse não conseguiu enxergar nada.
Levantou-se no deck e olhou por um minuto a sua volta. Tentou respirar com mais calma, e racionalmente tentava encontrar alguma explicação, provavelmente um peixe, era o mais óbvio. Virando-se e indo em direção a casa ela sorriu novamente. As vozes que vinham da cabana acalmaram seus pensamentos, podia ouvir sua mãe conversando, a risada que vinha da cozinha e já via a luz acesa na varanda.
O som da água a assusta novamente, parecia que algo se agitava atrás dela. Olhando para a beirada do deck ela não enxerga nada. Pequenas ondulações ainda podiam ser vistas, era algo grande. O medo já era maior e decida a correr virou-se na direção oposta pronta para fugir. Quando deu os primeiros passos foi surpreendida, a agitação nas águas agora estava a sua frente, perto da saída do deck. Suse pensou em gritar, mas sua voz não saia, apenas lágrimas escapavam de seus olhos, desesperada ela tentava entender o que acontecia.
Parada onde estava, sentiu medo de continuar a caminhar. O que quer que estivesse dentro da água acompanhava suas decisões, antecipando-se a elas.  O deck era estreito, Suse pensou que pudesse ser atacada por qualquer um dos lados. Precisava agir logo e sair dali. Deu um passo a frente, e mais um e com mais confiança avançou. Mas a água movimentou-se outra vez, bem debaixo de seus pés. E com um estrondo o deck se abriu a sua frente, jogando longe os pedaços de madeira que outrora serviam de apoio.
Suse gritou, mas o barulho vindo da casa abafava o som de desespero que rompia a noite. O deck começava a afundar. E afastando-se ela tentava se equilibrar na direção contrária. Mas o deck começou a se afastar, indo para o meio do lago, parecia estar sendo controlado. Ela gritava, chorava e agonizava imaginando o que estaria acontecendo. De onde estava ainda podia ver a cabana. Chamava pelos pais, ainda tinha esperança que pudessem ouvi-la.
O deck baixando começou a afundar. E seus gritos roucos, já com a garganta dolorida não eram tão altos. Os pés já estavam molhados e a água subindo já alcançava sua cintura, estava dentro da água. O frio já não era mais prazeroso, a temperatura baixa das águas do lago calaram-na de vez. Talvez ela conseguisse sair nadando. Em desespero Suse começou a mover-se, em pânico ela enxergava o barranco e com toda sua força buscava alcançar seu objetivo.
Ouviu a voz de sua mãe que lhe chamava, mas ela não tinha forças para responder. O barranco estava perto, mais alguns metros e estaria fora da água. Seu coração já tentava se acalmar, a voz de sua mãe parecia estar mais perto. Suspirando ela tocou com uma das mãos o barranco. Estava a salvo.
 A água agitou-se novamente, e olhando para trás Suse tentou agarrar-se depressa em qualquer coisa que pudesse ajudá-la a sair da água. A onda avolumou-se como se algo submerso se aproximasse, e quando chegou perto dela diminuiu como se desaparecesse. Suse agarrou uma raiz próxima de onde estava e tentou puxar o corpo para fora do lago.
Algo a segurou pelos pés e seus olhos ainda tiveram tempo de ver a cabana antes de ser arrastada para as profundezas do lago.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

A REVELAÇÃO DE ANABOTH

Como é difícil viver minha vida! Sentia raiva de minhas escolhas que aparentavam ter sido boas, mas que sempre me decepcionavam. Mas eu lutava comigo mesmo contra esse sentimento, dizendo sozinho em frente ao espelho que tudo iria acabar, assim que meu plano estivesse concretizado. Beatriz era um paliativo aos meus acessos de raiva, e o toque frio de sua pele ou seus olhos inquiridores me levavam para um mundo mais tranqüilo. Ela era a escolha que mais arrependimento me fazia sentir. Ao mesmo tempo em que eu esquecia os meus tormentos ao seu lado, sabia que ela era uma ilusão, nada mais do que magia negra e recalque de um homem desesperado.
Meu plano estava por se findar, aquela noite eu terminaria com todo meu sofrimento e traria de volta a vida aqueles que nunca deveriam ter me deixado, finalmente eu seria Deus. Beatriz também fazia parte dos planos, mas o que me torturava era pensar que uma vez de volta a vida, ela poderia me abandonar, e não mais amar-me como nesses inesquecíveis dias de morta-viva. Seria um risco, mas teria que corrê-lo, não poderia viver uma mentira eternamente.
A noite estava convidativa para um último sacrifício. No entanto, não seria necessário, pois essa parte do plano seria realizada em meu porão, e p único sacrifício seria o meu, teria que desistir de minha vida e entregá-la ao décimo terceiro demônio em troca de seus poderes. Não sentiria falta de minha alma, eu já havia condenado ao inferno de qualquer maneira depois de todas minhas experiências. Viver sem alma poderia doer menos, era o que eu esperava.
O círculo de evocação foi feito no chão com o sangue de um quadrúpede qualquer, Beatriz o havia matado, e o sangue ainda quente do animal cobria grande parte dos traços no chão. Em pequenos círculos estavam depositados os órgãos necessários ao ritual. Todas as doze garrafas contendo restos mortais de alguns humanos ocupavam suas tão esperadas posições. As pedras em volta do circulo, cada uma com a identificação de uma das antigas runas de Nug-Soth deixavam o ambiente ainda mais assustador. O horário previsto se aproximava, e como um filme passava em meus pensamentos, o momento tão esperado estava há poucos minutos, a minha espera.
Deitando-me no centro do circulo iniciei o ritual. As sombras começaram a se adensar ao meu redor e em seguida as risadas estrondosas romperam o silencio ecoando nas paredes de pedra. Meu corpo estava estranho, sentia calafrios e chegava a tremer devido aos espasmos. O necronomicon estava em minhas mãos e finalmente li o nome daquele que seria o último e mais poderoso dos demônios. Anaboth. Ele me revelaria todos os segredos da necromancia fazendo que me tornasse manipulador da morte.
Cortando minhas mãos espalhei meu próprio sangue sobre a estrela no centro do círculo, baixei a cabeça como em reverencia e proferi as palavras corretas. Quando terminei de conjurá-las respirei fundo e sorri, agora estava feito, eu havia terminado. As velas se apagaram ao meu redor, e toda a escuridão tomou conta do porão. Ouvi batidas surdas a minha volta, como que passadas pesadas que me cercavam, um vento frio que eu não saberia descrever de que direção vinha soprava sorrateiro. Meu nome foi dito baixo, mas era familiar. Era a voz de Beatriz.
Levantei minha cabeça e procurando cegamente no escuro tentava enxergar alguma coisa, parecia que algumas formas se distinguiam, mas logo desapareciam. E sem conseguir me conter chamei por ela. O sussurro se repetiu bem perto de mim dessa vez. Sentia-me confuso, afinal eu estava conjurando meu último demônio, esperava que ele se revelasse a mim. No entanto, tudo o que me parecia era que Beatriz estava escondida e por algum motivo Anaboth não viera.
As velas acenderam-se subitamente, porém suas luzes eram mais fortes, o fogo que as consumia era diferente, algo que nunca havia visto antes, senti vontade de tocá-lo, mas me detive. As sombras não paravam de me rodear, as paredes estavam repletas delas, como em uma tempestade, pareciam folhas sopradas para todos os lados. O sangue brilhava no círculo de evocação, como pedras preciosas refletiam a luz das velas. As garrafas a minha volta estavam vazias, nem mesmo o formol havia sobrado, quem quer que tenha feito aquilo, levou tudo.
Comecei a inquietar-me, alguma coisa estava errada, onde estaria meu demônio? Olhando em todos os cantos não notei nem a presença de Beatriz. Por que eu havia escutado sua voz a me chamar? Pensei que talvez tivesse cometido algum erro, alguma parte do ritual deve ter sido realizada de forma incorreta, ou quem sabe as palavras. Eu devia ter proferido alguma palavra de forma errada, e procurando o Necronomicon ao meu redor fui certificar-me. Não o encontrei.
Um doce gracejo me tirou a atenção, era a risada de Beatriz, que aumentando aos pouco invadia todo o porão. Percebi sua sombra perto da escada, e ela se aproximava do circulo onde eu estava. Assustei-me com sua aparência, sua pele não trazia mais a suavidade que me envolvera, estava amarelada e áspera, parecia enrugada. Seus olhos eram outros novamente, nada mais da transparência, eram mais amarelados que a sua pele, como os de uma cobra.
Não entendia o que era aquilo, e perguntei por Anaboth:
- Onde está o meu demônio? O que significa tudo isso? – e respondendo em meio a uma risada estridente ela me disse:
- Estou bem aqui!
Como eu não esboçava nenhuma reação ela continuou:
- Mortal idiota! Por acaso pensou que poderia dominar um demônio? Achou realmente que seria tudo tão fácil assim? Alguns corpos, alguns restos, algumas evocações e pronto! Teria o necronomicon aos seus pés? Vocês humanos são muito patéticos!
Eu tentava me mexer, mas não conseguia, tentava me levantar, mas estava imóvel, estático.
- Não consegue se mexer não é mesmo? E nunca irá conseguir, todas essas marcas nesse circulo que você mesmo fez te prenderam aí dentro. Você está preso!
Uma pergunta apenas consegui formular:
- Por que Beatriz?
E cuspindo em mim ela respondeu:
- Eu não sou Beatriz, sou Anaboth! Beatriz nunca existiu tudo sempre foi uma farsa! Eu precisava de você, esse sempre foi o plano, e você o executou. Você sempre foi à presa ideal, com todas as suas frustrações e inseguranças. O livro chegou até você como planejado, e eu só precisava de tempo para fazê-lo acreditar. Porém era necessário algo que você não tinha para concretizar meu plano, e Beatriz foi a isca perfeita.
- Mas como pode ser? Esse livro esteve comigo há muito tempo, guardado, escondido!
- Nunca se perguntou sobre a forma como esse livro chegou as suas mãos? – perguntou Anaboth, e continuou:
- Sua paixão súbita por Beatriz era necessária, pois sem esse sentimento lamentável eu não conseguiria voltar! E agora, através de você, eu irei me libertar e seu mundo medíocre irá me acolher!
Anaboth adentrou o circulo onde eu permanecia imóvel. Ele segurou-me pela cabeça, e uma dor horrível percorreu meu corpo, sentia como se estivesse em chamas, fui perdendo o fôlego e os sentidos. Não senti mais nada.
Não sei quanto tempo passou, quando abri os olhos respirei aliviado, pois havia sido um sonho. Tentei andar, mas não consegui, eu estava preso. Apalpando ao meu redor percebi que eram paredes de vidro. Comecei a me lembrar, eu ainda estava no porão. A minha frente um corpo estava estirado no meio do circulo de evocação, e assim como eu tentava entender onde estava, pois apalpava o chão ao seu redor.
Ele se levantou finalmente e pude ver quem era. Era eu. Meu corpo se levantou e sacudindo a poeira dos ombros, olhou-me sorrateiro e sorriu. Anaboth havia conseguido. Eu estava dentro de um das garrafas, ou melhor, a minha alma, presa por toda a eternidade. Outras garrafas estavam perto de mim, e eu pude reconhecê-los. Eram as vítimas de minhas loucuras noturnas, presas como eu. Em uma garrafa ao meu lado vi Beatriz, ela olhou-me, mas desviou o olhar, eu era um estranho. Eternamente preso ao lado de alguém que não me conhecia.