Um dos mestres da literatura fantástica. Esse livro é sinistro desde o começo. O mais interessante é que nos prende a atenção e causa terror sem que os fatos sejam esclarecidos ou narrados claramente. A maneira intrigante e apavorante que o autor conta a história, ainda é para poucos escritores...
O aspecto de Charles agora tornara-se muito conturbado e atormentado e todos concordaram posteriormente que nesse período ele talvez desejasse prestar alguma declaração ou fazer uma confissão das quais se abstinha por mero terror. O hábito mórbido da mãe de ficar ouvindo à noite revelou que ele realizava saídas freqüentes, protegido pela escuridão, e a maioria dos psiquiatras mais acadêmicos concorda atualmente em culpá-lo pelos revoltantes casos de vampirismo que a imprensa relatou de modo tão sensacionalista na época, mas cuja autoria ainda não pode ser concretamente apontada. Esses casos, tão recentes e comentados que dispensam detalhes, envolveram vítimas de todas as idades e tipos a aparentemente concentraram-se em duas localidades distintas: a colina residencial e o North End, perto da residência dos Ward, e os bairros suburbanos do outro lado da linha Cranston perto de Pawtuxet. Notívagos e pessoas que dormiam de janelas abertas foram igualmente atacados, e as que sobreviveram para contar a história foram unânimes em descrever um monstro magro, ágil, que pulava, com olhos de fogo, que cravava seus dentes na garganta ou no antebraço e se satisfazia sofregamente.
O doutor Willett, que se recusa a datar a loucura de Charles Ward até mesmo nesta época, mostra-se cauteloso ao tentar explicar esses horrores. Ele afirma possuir certas teorias próprias e limita suas declarações positivas a um tipo peculiar de negação. “Não pretendo”, diz ele, “apontar quem ou o que acredito tenha perpetrado esses ataques e assassinatos, mas declaro que Charles Ward era inocente. Tenho razões para garantir que ele ignorava o gosto do sangue, como de fato seu contínuo definhamento físico, em função da anemia, e uma crescente palidez comprovam mais do que qualquer argumento verbal. Ward se envolveu com coisas terríveis, mas pagou por isto, ele jamais foi um monstro ou um vilão. Quanto ao que está acontecendo agora, nem gosto de pensar. Houve uma mudança e quero crer que o velho Charles Ward morreu com ela. Sua alma morreu, de qualquer maneira, mas o corpo tresloucado que desapareceu do hospital de Waite tinha outra.”
Willett fala com autoridade, pois frequentemente visitava a residência dos Ward para cuidar da senhora Ward, cujos nervos começavam a ceder por causa da tensão. O hábito de ficar ouvindo durante a noite gerara alucinações mórbidas que ela confiava com certa hesitação ao médico, o qual as levava na brincadeira em suas conversas com ela, embora o fizessem meditar profundamente quando estava sozinho. Esses delírios sempre diziam respeito aos sons fracos que imaginava ouvir do laboratório e no quarto de dormir da mansarda, e enfatizavam a ocorrência de suspiros e soluços abafados nas horas mais impossíveis. No início de julho, Willett ordenou que a senhora Ward passasse uma temporada em Atlantic City por tempo indefinido a fim de se recuperar e recomendou ao senhor Ward e ao tresloucado e esquivo Charles que escrevessem para ela somente cartas confortadoras. É provavelmente a essa fuga forçada e relutante que ela deve sua vida e sua saúde mental.
LOVECRAFT, H.P. O caso de Charles Dexter Ward. Porto Alegre: L&PM, 1997.
