quinta-feira, 4 de setembro de 2014

NO MEIO DA LAMA



Por todos os lados a lama existia.
Movia-se em câmera lenta na tentativa de sair do lugar. Nada acontecia. A viscosidade preenchia todo seu espaço, pois mantinha-a presa, inerte em um mundo assoberbado de números, datas, compromissos.
Um dia tudo parou, assim, de repente. 
Não tinha forças para romper com aquele mundo viscoso de lama em que se chafurdava a cada dia. Alguém fez isso por ela, o único que poderia fazer alguma coisa.
Quando ela parou, percebeu que gostava de ficar assim, a lama que cobria seus olhos, naquele momento, deixava de existir. Não era preciso muito, apenas respirar melhor já fazia com que seus pensamentos fossem mais claros. 
Agora que havia sentido o gostinho desse momento livre, nunca mais iria se afundar no mundo viscoso. Aos poucos a liberdade a preenche, calma e sorrateira. A lama não se extingue assim, com uma simples vontade. A lama aos poucos perde a força enquanto Ela emerge do mundo que criou. 

segunda-feira, 24 de março de 2014

E agora?

E quando não se tem mais tempo de viver?
E quando os compromissos ocupam todo o seu tempo racional?
E quando a dor nos ombros, dos dias que escapam por entre os dedos, pesam mais do que deveriam?
E quando a única companhia que se tem é a do medo de não conseguir vencer?
E quando todos dizem que você irá conseguir, mesmo sem saberem a metade do que são as suas cruzes diárias?
E quando a incerteza é maior do que a decisão tomada?
E quando se tem vontade de chorar, mas não se tem tempo para isso?
E quando alimentar-se ou tomar banho torna-se momento de luxo?
E quando se olha pela janela e o dia ensolarado surpreende a consciência adormecida no fluxo dos dias?
E quando se percebe que talvez a escolha seja o que menos importa?
E quando...
Até quando?

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

MÓRBIDO

Posso dizer que a vida nunca foi fácil para mim. Não me faço de vítima nem busco culpados para o meu destino. Tudo o que sei sobre mim, ninguém me contou. Minhas memórias insistem em me torturar, e mesmo que os bons e raros momentos tenham existido, tudo de que me lembro é: dor e perda. Quando as pessoas me olham não entendem o motivo de carregar em meu rosto uma expressão perdida. Também já faz tempo que perdi o interesse em responder a essas perguntas idiotas.
Hoje não posso mais voltar no tempo e mudar as minhas escolhas, muito menos as escolhas de outrem. Decidi fazer isso há muito tempo, e agora irei até o fim, por mais que eu tenha medo do que possivelmente encontrarei, é tarde. Minhas mãos já estão sujas de sangue, o cheiro dos corpos impregna minhas roupas, minha casa aprisiona almas atormentadas devido as minhas incursões noturnas.
Lembro-me de quando minha mãe morreu. Depois de tudo consumado, e de seu corpo abruptamente "guardado" em uma gaveta funerária, eu permanecia inerte. Meus pensamentos absortos vagavam dentro da gaveta e me perguntava; como ela estaria se sentindo ali? A raiva me dominava e meu impulso de abrir o caixão e tirá-la de dentro era detido no último segundo. Eu sempre a visitava, e o pensamento mórbido me acompanhava. Perguntava-me como ela estaria, seu corpo estaria já apodrecido? A aparência cadavérica já seria uma marca? Ficava em frente a sua gaveta e pensava que tudo o que ela havia sido não passava agora de uma massa inerte, apodrecendo, devorada, solitária.
Depois de alguns anos, seu corpo foi retirado, e tudo o que restara foi transportado dentro de um saco preto. Ossos e pó, cinzas e resto.
Nessa época eu ainda acreditava nos homens, e talvez por esse motivo tenha continuado minha vida pacata, cinza e vazia. A morbidez havia me deixado respirar, já não pensava com tanta frequência no corpo de minha mãe, ou no que sobrara dele.
Acredito que o determinismo em minha vida é inabalável, eles teriam que me deixar.
Meu pai assim como minha mãe, e como todos nós, colheu o resultado de suas péssimas decisões, e lá eu me encontrava novamente, em frente a um caixão decorado. Olhando para seu corpo pela derradeira vez e lutando com minha memória para que ela armazenasse a imagem que eu enxergava. Olhava para seu corpo e os terríveis pensamentos chegavam como em ondas. Já conseguia imaginar tudo destruído, os dedos a se desmancharem, as mãos cadavéricas cruzadas por sobre o ventre que regurgitava o sangue frio que se decompunha. Sou a única pessoa que pensa coisas assim? Talvez não, mas tudo o que tenho feito me transformou em uma aberração.
E da mesma forma como acontecera com minha mãe, eu insistia em visitar o corpo de meu pai. E parado em frente a sua tumba, meus pensamentos penetravam a tampa de pedra, e me contavam o que viam. A decomposição me torturava, e a impotência de não poder pará-la me enraivecia. Mortos. Só isso, era tudo o que eles eram, mortos.
Tudo foi tirado de mim. E ali em frente à imagem de um Cristo feito de bronze, que ironicamente estava de braços abertos, decidi não me entregar. A morte seria manipulada.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

A formiga e o garotinho

Sentada alí, em frente ao salão mortuário, eu me perguntava: por quê? essa é a clássica pergunta que não tem resposta, pelo menos a resposta que queremos. Qualquer resposta seria ridícula, afinal, não queremos que nenhuma resposta surja, só queremos sofrer e perguntar o porquê de tudo isso, somos estranhos.
O garotinho era desconhecido, não sei nem o nome dele. Conheço apenas seu irmão, e nem o conheço tão bem assim. Na verdade nem gosto muito dele, mas achei que seria bom ir ao velório de seu irmãozinho. Sou meio esquisita também, seria legal ir a um velório.
Agora eu estava ali, sentada em um banco de madeira com duas pessoas ao meu lado, o pseudo-amigo e seu namorado. Esqueci de contar essa parte, ele era homossexual. Estava uma situação bem estranha, mas ninguém falava nada. Nessas horas, ninguém se preocupa com nada, nada mais faz sentido.
Decidi entrar na pequena capela mortuária, uma vontade besta de ver o corpo do garotinho desconhecido. Achei que seria de bom gosto cumprimentar a mãe, mas confesso que esse meu lado mais sombrio é que ditava as regras, queria olhar, furtivamente, o corpo dentro do caixão.
A mãe estava chorando, novidade. Mas mães me comovem sempre, senti a dor dela quando a toquei. Um calafrio percorreu meu corpo e senti a dor que a perturbava. Não consegui olhar para o garotinho. Tentei fazer com que meu olhar se perdesse na sala, mas a dor daquela mãe foi maior. Achei que e
staria profanando aquele corpo infantil se meu olhar o mirasse. Tudo o que pude ver foi um rosto pálido coberto por um fino véu. Não olhei mais.
Senti-me mal, era preciso sair dali e respirar ar mais fresco. Sentei-me outra vez, no mesmo banco. Ao lado dos jovens que eu mal conhecia. Tive a impressão que eu era uma intrusa, afinal, o que eu estava fazendo ali? Mas, resolvi ficar assim mesmo.
Meus olhos agora só conseguiam mirar o chão, não tinha mais vontade de olhar nos olhos de mais ninguém. Assim que pudesse, sairia dali, foi um erro, não deveria ter ido.
Uma pequena formiga entra no meu campo de visão, bem pequenina. Tenho vontade de pisar nela, esmagá-la com toda a angústia que estou sentindo. A formiga, a pequena formiga tem uma coisa que o garotinho dentro da sala mortuária não tem. A formiga segue a sua vida, caminha seus passos de formiga, faz as coisas de formiga, vive sua vida de formiga. O garotinho não tem o que a formiga tem. Como assim, eu penso. Por que a formiga anda enquanto o garoto está adormecido para sempre? Como duas criaturas tão singulares podem se diferenciar por algo que é comum a todos? Por que a formiga deve viver e o garotinho morrer? Tento encontrar uma razão para tudo isso, mas acho que não existe. Tive vontade de roubar aquela essência vital que existia na formiga e levar de presente para o garotinho. Quem precisa de formigas? Seria muito melhor ver um garotinho sorrindo. Não pude fazer nada. Que raiva! Era muito injusto! Um pássaro passou voando baixo e pousou perto da porta da câmara mortuária. Era uma afronta! Um pássaro! Quem precisa de pássaros? Vamos roubar essa essência que esse pássaro também tem! O mundo já está cheio de pássaros, preciso agora mesmo desse! Mas não pude fazer nada! A vida continuava a se agitar ao redor do garotinho sem vida, tudo agora era impotência, eu não podia fazer nada, ninguém podia. 
Fiquei pensando essas besteiras por um longo tempo, nem sei bem quanto, mas quando notei, estava sozinha no banco. Era hora de partir, não havia mais ninguém a olhar nos olhos. Pisei na formiga.