O mundo invisível permeia a realidade
humana. Mas, o que seria a realidade humana? Os valores apregoados por
determinada sociedade em determinado recorte no tempo são os critérios que
definem o que é verossímil daquilo que não é, pelo menos naquele momento.
O que faz com que os homens
compartilhem da mesma visão de realidade? São considerações muito subjetivas
que compõem os critérios do mundo considerado racional. Pois parte-se do
princípio de que a racionalidade deva compor a realidade em que todos estão
inevitavelmente inseridos.
Mas como considerar o que é racional?
E mesmo quando este é considerado pergunta-se: racional para quem? Quando? Por
quê? São justamente esses os questionamentos que não permitem que essa realidade
seja imutável, são esses os argumentos que possibilitam que o real seja o ponto
de vista de cada indivíduo, o mínimo matiz deve ser considerado, pois a
realidade de outrem é apenas uma parte desse invisível que a todos os homens
cerca.
O que os olhos veem é o mesmo que a
mente vê? O que um homem vê em um quarto escuro é o mesmo que uma criança vê?
Provavelmente não. Cada indivíduo parte do seu contexto, das suas experiências
e das suas expectativas. Somos ímpares, portanto a realidade humana pode estar
fragmentada de sentidos.
As possibilidades compõem o universo,
ainda mais quando esse universo é o universo literário. As possibilidades no
mundo do imaginário criam sua própria estrutura de realidade, pois o real passa
a ser aquilo que o leitor permita que seja. O que aceitar ou não como fator
constituinte de determinada história passa pelo crivo do leitor, por sua
capacidade e/ou facilidade em compor seu próprio mundo. A obra literária é um
diálogo, não é um monólogo em que só a voz do autor se faz presente. Pelo
contrário, a obra literária é um diálogo com o leitor, um contrato, uma
construção que só se concretiza quando há comprometimento.
“Não existe uma distinção clara entre
o real e o irreal; todas as coisas se manifestam do seu jeito apenas graças aos
canais físicos e mentais por meio dos quais nós nos tornamos conscientes
delas,” disse Jervas Dudley, personagem de H.P. Lovecraft no conto “A Tumba”.
As ideias do autor na voz de sua personagem apontam o caminho que essa
narrativa irá percorrer. Essas poucas palavras são os indícios de uma marca
literária a qual buscamos identificar, um gênero capaz de agir no imaginário do
leitor como nenhum outro gênero literário o pode fazer. A incitação da dúvida
cria, enfim, a literatura fantástica.
Howard Phillips Lovecraft nasceu em
1890 na região da Nova Inglaterra, na cidade de Providence em Rhode Island e
faleceu em 1937. Muitos críticos consideram H.P. Lovecraft um dos escritores de
terror de maior influência no século XX. Destacou-se por seus contos de horror
que apresentam também traços de ficção científica, tornando-se um dos
precursores dessa temática nos Estados Unidos.
Como a maioria dos escritores,
Lovecraft alcançou a fama depois de sua morte, mas ainda em vida pode desfrutar
de um público diminuto que o admirava. Além de escrever contos e histórias de
horror, o autor também produziu crítica literária, sendo um dos primeiros a
apresentar uma proposta de estudo ao gênero fantástico na literatura. Em sua
obra conhecida como O horror sobrenatural na literatura publicada em 1945, mas
escrita em 1927, o autor define a literatura fantástica como aquela capaz de
suscitar o medo, mais especificamente o medo do desconhecido no leitor. Dessa
forma, o autor depositava no leitor implícito a responsabilidade de gerar tal
sentimento.
A Tumba narra a história de um jovem
que, supostamente, enlouqueceu depois que alguns eventos “fantásticos”
ocorreram em sua vida. O conto é narrado em primeira pessoa e a forma como é
apresentado torna leitor e narrador uma única entidade, pois é possível
colocar-se diretamente na posição daquele que narra e analisar sua argumentação
dentro da perspectiva desse narrador.
Jervas Dudley é quem narra sua
história, a personagem narra os fatos desde a infância, contando onde nasceu,
onde morou, quais eram seus hábitos desde menino. A ambientação também está
presente, o narrador descreve a região que habitava, sua casa, mas detêm-se
mais na descrição do cenário onde ocorreria a maior parte da história, ou seja,
na antiga tumba da família.
A história narrada vai acontecendo aos
poucos, Jervas Dudley narra fatos isolados da infância e da adolescência que só
posteriormente completarão o sentido da obra. Desde tenra idade o narrador
sente curiosidade em desvendar os segredos daquela tumba antiga presente na
propriedade da família. Tumba essa “encontrada” ao acaso por ele e que possui
uma lenda a envolvê-la. A antiga família, que morava na propriedade, morreu em
um grave incêndio. A mansão que se tornou uma ruína antiga fora queimada. As
causas do incêndio ainda são um mistério, mas o que se conta é que nenhum dos
habitantes sobreviveu, todos morreram de forma misteriosa nesse incêndio.
Conforme os anos passavam o menino, que passa a ser um rapaz, alimentava o
desejo de adentrar aquela tumba e descobrir o que ela guarda.
A tumba não estava aberta, havia uma
corrente muito grossa com um cadeado a fechar sua entrada. Jervas nunca
conseguia ultrapassar aquela barreira, o máximo que conseguiu foi esticar um
braço para dentro das grades segurando uma vela. O que viu deixou-o ainda mais
intrigado, pois uma escadaria surgiu levemente iluminada pela chama da vela.
Todas as experiências narradas vão
construindo a tensão na narrativa, o envolvimento do leitor vai se adensando, à
medida que os fatos vão acontecendo leitor e narrador aproximam-se cada vez
mais. A descoberta de um vínculo genealógico com a tumba antiga deixa o
narrador ainda mais convencido da necessidade de adentrar naquele lugar. Depois
desse ocorrido, a intensidade da narrativa se modifica, há uma obsessão por
parte de narrador em desvendar o mistério que o assombra desde a infância.
Sensações e sentimentos tornam-se mais frequentes, apresentando uma tênue
fronteira entre a realidade e a fantasia da personagem.
À medida que a tensão aumenta, em que
a dúvida é cada vez mais verossímil, o fantástico ganha vida e, como um ser
animado, ganha um corpo e torna-se quase que palpável ao leitor. A capacidade
do autor em estimular no leitor essa sensação deve ser enaltecida. Manter essa
tensão ao longo do texto requer habilidade e humanidade. A humanidade está
diretamente com a percepção do autor em saber que tipo de história será capaz
de tal intento. Mas não é só saber o tipo de história que poderá criar o
fantástico, é preciso dominar a arte da palavra, selecionando vocábulos
adequados e, como um arquiteto, manejar as estruturas de uma forma que prendam
o leitor e o direcione à proposta almejada.
Observando o texto de Lovecraft
nota-se que essa “arquitetura” inicia-se nas primeiras linhas. A escolha do narrador
em primeira pessoa já aproxima muito o leitor dessa personagem. A perspectiva
apresentada é a perspectiva desse narrador, que tomando para si a palavra
direciona as atenções para onde quer e subjuga o leitor a acompanha-lo em suas
elucubrações. O inicio do texto já em um indício do que se pode esperar do
conto: “Ao narrar as circunstancias que levaram ao meu confinamento dentro
deste asilo para loucos, tenho consciência de que minha situação atual vai
criar uma dúvida natural sobre a autenticidade desta narrativa.”
Percebe-se nesse breve trecho a
intenção de Lovecraft em sugestionar a dúvida ao leitor. É nessa incerteza que
ocorre o fantástico, pois esse é a hesitação experimentada por um ser que
conhece apenas as leis da natureza, em face de um acontecimento aparentemente
sobrenatural (TODOROV, 1975, p. 31). O limite entre acreditar ou não é o que
cria o fantástico, que lhe dá vida. A hesitação do leitor é uma condição do
fantástico.
Pode-se perceber que Lovecraft figura
entre o gênero como um dos principais autores. Deteve-se em um fantástico
voltado às temáticas do sobrenatural, da morte, da ficção científica. Mesmo
conseguindo reconhecimento apenas póstumo, deve ser visto como autor de
destaque dentro do gênero fantástico, pois conseguiu por meio de suas obras
cumprir com o papel ao qual se propôs. Tendo vista que esse gênero literário é
um ramo estreito, mas essencial da expressão humana que atrairá uma audiência
limitada dotada de uma sensibilidade especial (LOVECRAFT, 1973, p.105).
Referências:
LOVECRAFT, H.P. A TUMBA e outras histórias. Porto Alegre, L&PM, 2007.
LOVECRAFT, H.P. O Horror Sobrenatural na Literatura. R.J., Francisco Alves, 1973.
TODOROV, T. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo, Perspectiva S.A.,
1975.