terça-feira, 17 de novembro de 2015

Depois de Nietzsche


Quanto mais tempo dedico à leitura, mais confuso se torna o tempo. Vejo quão frágeis são os meus valores, e que eles não me valeram de nada.
As certezas que pareciam irrefutáveis são os ídolos com os pés de barro que um a um são martelados e despedaçados a cada nova sinapse que construo.

A angústia é sufocante e torna a mera ação de respirar dificultosa, não sei mais se é possível voltar. A ignorância é ópio. Perto da loucura é que a sanidade me permite entrever um ponto certo. A lucidez causa dor e estranhamento até para com os meus. Que atitude tomar diante de nossa pequenez pensante e hipócrita? Dói o peito e passo a compreender o motivo de tantos terem fugido, não da vida, mas de si mesmos. Como suportar tantas revelações? Diante do véu que se finda, encontro ou reencontro a essência de mim mesma, como objeto perdido que se recupera. 


segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

ENTREVISTA COM O VAMPIRO - ANNE RICE

Não compare a leitura desse livro ao filme com Brad Pitt e Tom Cruise. Por mais que você tenha gostado do filme, ele não chega aos pés da leitura do texto de Anne Rice. Nem que quisessem o longa-metragem seria um terço do que a história conta.
Comecemos com as disparidades: Brad Pitt não perde a esposa e o filho, não! A história é mais elaborada, seu sofrimento mortal é proveniente da morte do próprio irmão. Louis (e não Bad Pitt) é testemunha essa morte e se sente responsável pelo ocorrido, mas isso devido a inúmeras situações apresentadas anteriormente. Louis é um sofredor, o mais terrível sofredor que se possa imaginar, pois sua consciência questionadora o aprisiona em um castelo de dúvidas; incertezas essas que o acompanharão por toda a obra.
O texto é muito bem escrito e Anne Rice consegue transmitir toda a essência vampiresca em sua narrativa. Garotinhas acostumadas com vampiros fluorescentes se sentirão frustradas, aqui não há espaço para romances juvenis. Aqui o que temos é um vampiro de verdade.
Muitas passagens do livro são reflexivas, não para os personagens apenas, mas para o leitor, pois a autora desmascara o sofrimento humano em pensamentos imortais, e notamos que as incertezas humanas não são tolices, são incertezas reais e que quando são vistas da perspectiva da imortalidade, parece que se tornam ainda maiores. “As pessoas param de crer em Deus ou na bondade, mas continuam a acreditar no diabo. Não sei por quê. Não, realmente não sei por quê. O mal é sempre possível. E a bondade é eternamente difícil”. Disse Louis ao jovem repórter durante a entrevista.
Louis é um personagem muito complexo. Pense em alguém que sofre muito e a maior parte do tempo está consciente desse sofrimento, eis o nosso personagem. Louis simplesmente se importa com a vida. Ela não a enxerga com a frieza vampiresca comum, ele a valoriza e padece de sua condição que o obriga a ceifar a existência humana para alimentar sua existência imortal.
Mas falemos um pouco de Lestat, a outra face da imortalidade. Lestat transformou Louis, com a ilusão de que esse fosse o vampiro certo para estar ao seu lado. Ele propôs a Louis uma escolha quando o transformou, que escolhesse morrer ou a imortalidade. Louis seguiu Lestat nas sombras imortais. E dessa escolha nasce uma relação de amor e ódio nos dois sentidos. Louis esperava que Lestat fosse o seu professor, que o ensinasse os segredos dessa vida incomum. Mas Lestat era zombeteiro e queria apenas que Louis fosse como ele, sem preocupar-se com nada mais além de viver uma vida confortável e sanguinária ao seu lado.
Com o desenvolver da narrativa, Louis percebe os verdadeiros interesses de Lestat, que estavam voltados à sua fortuna e à possível segurança que poderia desfrutar ao lado do novo vampiro. Lestat tem um pai, Louis tem a mãe e a irmã. Veja que no livro eles não são vampiros sozinhos no mundo, existe um contexto por trás de tudo, o que torna a história ainda mais intrigante, principalmente sobre Lestat. Em algumas situações o pai do vampiro conta a Louis sobre o filho, o que causa muita curiosidade, mas Lestat se recusa a falar de seu passado ou sobre quem o transformou, deixando Louis ainda mais confuso. Sem saber quem é Lestat de verdade, Louis faz as próprias conjecturações, buscando decifrar o vampiro que está ao seu lado. Como em um jogo, os diálogos entre essas personagens deixam sempre algo nas entrelinhas, o leitor fica intrigado e desejando mais detalhes da trama. Mas.............não se esqueça que esse é apenas o primeiro livro das crônicas vampirescas de Anne Rice, portanto, muitas coisas ficarão, ainda, encobertas pelas trevas, vindo à luz somente em obras posteriores.
Uma reflexão interessante de Louis é: “E eu a via doce e palpável à minha frente, uma criatura frágil e preciosa que logo envelheceria, logo morreria, logo perderia aqueles momentos que, em sua intangibilidade, nos prometem, erradamente... erradamente, uma imortalidade. Como se fosse o nosso próprio direito de nascer, do qual não conseguimos captar o sentido até chegarmos à meia-idade, quando temos pela frente o mesmo número de anos pelo qual já passamos e que já ficaram para trás. Quando cada momento deveria ser o primeiro vivido e assim apreciado.” Sabiamente, o imortal define a maturidade humana com relação à própria existência. Nossa maneira torta de enxergarmos a juventude como época de imortalidade, como se fossemos eternos e que nada mais importasse, a não ser viver intensamente esses breves momentos áureos, acreditando que tudo estará sempre a nossa disposição. A maturidade só chega com a experiência e com ela percebemos que a fugacidade da vida é real e que apreciar a vida é mais do que viver de aventuras e inconsequências.
Mas, destaco aqui, a partir dessas palavras destinadas à visão de Louis de uma jovem, a personagem Cláudia. A doce vampirinha que vem colorir as páginas do livro com sua intempestiva personalidade. A princípio seria ela alimento para Louis em um momento de fraqueza, mas, que por maldade (ou medo de que Louis o abandonasse) Lestat a transforma, fazendo com que Louis e toda a sua compaixão adotem a pequena como membro dessa intrigante família.
Inicialmente, Louis ensina a Cláudia tudo o que sabe, mas com o passar dos anos, o que Anne Rice nos apresenta é uma mulher presa em um corpo infante. Sua linguagem e seus modos não são de criança; sua ousadia e seus desejos deixam de ser jogos infantis. Cláudia tem o desejo por sangue de Lestat e o coração descompassado de Louis. Mais uma vez aqui temos um distanciamento da obra cinematográfica e do livro publicado. A Cláudia impressa nas folhas do papel é mais ardilosa e sensual, suas falas nos fazem pensar que não se trata de uma criança frágil, mas de uma amante sanguinária e manipuladora.
A tensão no livro é constante, mas fica mais evidente quando Louis conhece Armand, o vampiro europeu, e por ele se apaixona. Armand surge como o exemplo de vampiro esperado por Louis há muito tempo, sua postura e a forma como enxerga o mundo vão ao encontro daquilo que Louis procurava em um mestre. No filme isso não fica tão evidente, mas no livro é possível perceber que esse encontro é o encontro de duas almas irmãs, como se Armand e Louis fossem destinados um ao outro. Não pense em encontros românticos!!!!!! Não é isso! Mesmo que exista um tom romântico nessas palavras, o encontro desses imortais é mais do que romance, é algo transcendental. Os mais preconceituosos enxergarão o que Anne Rice não colocou no papel, para esses deixo minhas lamentações e recomendo a leitura de “Crepúsculo”, pois essa sim é uma leitura para o seu nível de interpretação!
Sem mais spoiler, essa obra deixa marcas. Para todos os amantes das trevas, Anne Rice deixa um legado com a primeira obra da série. É inevitável a sensação de vazio quando terminamos a leitura desse texto, ao mesmo tempo em que queremos chegar ao final, dói o coração quando as páginas se encerram. Mas, ainda bem que a autora não nos deixou na mão e escreveu mais de uma dezena de livros dessa sequência.

Sem mais, tira a bunda da cadeira e corra já comprar seu livro! Afinal, como diria Louis: Só nós (humanidade) compreendemos o passar do tempo e o valor de cada minuto da vida humana. Faça a sua leitura valer a pena!

domingo, 1 de fevereiro de 2015

A TUMBA - Lovecraft

O mundo invisível permeia a realidade humana. Mas, o que seria a realidade humana? Os valores apregoados por determinada sociedade em determinado recorte no tempo são os critérios que definem o que é verossímil daquilo que não é, pelo menos naquele momento.
O que faz com que os homens compartilhem da mesma visão de realidade? São considerações muito subjetivas que compõem os critérios do mundo considerado racional. Pois parte-se do princípio de que a racionalidade deva compor a realidade em que todos estão inevitavelmente inseridos.
Mas como considerar o que é racional? E mesmo quando este é considerado pergunta-se: racional para quem? Quando? Por quê? São justamente esses os questionamentos que não permitem que essa realidade seja imutável, são esses os argumentos que possibilitam que o real seja o ponto de vista de cada indivíduo, o mínimo matiz deve ser considerado, pois a realidade de outrem é apenas uma parte desse invisível que a todos os homens cerca.
O que os olhos veem é o mesmo que a mente vê? O que um homem vê em um quarto escuro é o mesmo que uma criança vê? Provavelmente não. Cada indivíduo parte do seu contexto, das suas experiências e das suas expectativas. Somos ímpares, portanto a realidade humana pode estar fragmentada de sentidos.
As possibilidades compõem o universo, ainda mais quando esse universo é o universo literário. As possibilidades no mundo do imaginário criam sua própria estrutura de realidade, pois o real passa a ser aquilo que o leitor permita que seja. O que aceitar ou não como fator constituinte de determinada história passa pelo crivo do leitor, por sua capacidade e/ou facilidade em compor seu próprio mundo. A obra literária é um diálogo, não é um monólogo em que só a voz do autor se faz presente. Pelo contrário, a obra literária é um diálogo com o leitor, um contrato, uma construção que só se concretiza quando há comprometimento.

“Não existe uma distinção clara entre o real e o irreal; todas as coisas se manifestam do seu jeito apenas graças aos canais físicos e mentais por meio dos quais nós nos tornamos conscientes delas,” disse Jervas Dudley, personagem de H.P. Lovecraft no conto “A Tumba”. As ideias do autor na voz de sua personagem apontam o caminho que essa narrativa irá percorrer. Essas poucas palavras são os indícios de uma marca literária a qual buscamos identificar, um gênero capaz de agir no imaginário do leitor como nenhum outro gênero literário o pode fazer. A incitação da dúvida cria, enfim, a literatura fantástica.

Howard Phillips Lovecraft nasceu em 1890 na região da Nova Inglaterra, na cidade de Providence em Rhode Island e faleceu em 1937. Muitos críticos consideram H.P. Lovecraft um dos escritores de terror de maior influência no século XX. Destacou-se por seus contos de horror que apresentam também traços de ficção científica, tornando-se um dos precursores dessa temática nos Estados Unidos.
Como a maioria dos escritores, Lovecraft alcançou a fama depois de sua morte, mas ainda em vida pode desfrutar de um público diminuto que o admirava. Além de escrever contos e histórias de horror, o autor também produziu crítica literária, sendo um dos primeiros a apresentar uma proposta de estudo ao gênero fantástico na literatura. Em sua obra conhecida como O horror sobrenatural na literatura publicada em 1945, mas escrita em 1927, o autor define a literatura fantástica como aquela capaz de suscitar o medo, mais especificamente o medo do desconhecido no leitor. Dessa forma, o autor depositava no leitor implícito a responsabilidade de gerar tal sentimento.

A Tumba narra a história de um jovem que, supostamente, enlouqueceu depois que alguns eventos “fantásticos” ocorreram em sua vida. O conto é narrado em primeira pessoa e a forma como é apresentado torna leitor e narrador uma única entidade, pois é possível colocar-se diretamente na posição daquele que narra e analisar sua argumentação dentro da perspectiva desse narrador.
Jervas Dudley é quem narra sua história, a personagem narra os fatos desde a infância, contando onde nasceu, onde morou, quais eram seus hábitos desde menino. A ambientação também está presente, o narrador descreve a região que habitava, sua casa, mas detêm-se mais na descrição do cenário onde ocorreria a maior parte da história, ou seja, na antiga tumba da família.
A história narrada vai acontecendo aos poucos, Jervas Dudley narra fatos isolados da infância e da adolescência que só posteriormente completarão o sentido da obra. Desde tenra idade o narrador sente curiosidade em desvendar os segredos daquela tumba antiga presente na propriedade da família. Tumba essa “encontrada” ao acaso por ele e que possui uma lenda a envolvê-la. A antiga família, que morava na propriedade, morreu em um grave incêndio. A mansão que se tornou uma ruína antiga fora queimada. As causas do incêndio ainda são um mistério, mas o que se conta é que nenhum dos habitantes sobreviveu, todos morreram de forma misteriosa nesse incêndio. Conforme os anos passavam o menino, que passa a ser um rapaz, alimentava o desejo de adentrar aquela tumba e descobrir o que ela guarda.
A tumba não estava aberta, havia uma corrente muito grossa com um cadeado a fechar sua entrada. Jervas nunca conseguia ultrapassar aquela barreira, o máximo que conseguiu foi esticar um braço para dentro das grades segurando uma vela. O que viu deixou-o ainda mais intrigado, pois uma escadaria surgiu levemente iluminada pela chama da vela.
Todas as experiências narradas vão construindo a tensão na narrativa, o envolvimento do leitor vai se adensando, à medida que os fatos vão acontecendo leitor e narrador aproximam-se cada vez mais. A descoberta de um vínculo genealógico com a tumba antiga deixa o narrador ainda mais convencido da necessidade de adentrar naquele lugar. Depois desse ocorrido, a intensidade da narrativa se modifica, há uma obsessão por parte de narrador em desvendar o mistério que o assombra desde a infância. Sensações e sentimentos tornam-se mais frequentes, apresentando uma tênue fronteira entre a realidade e a fantasia da personagem.

À medida que a tensão aumenta, em que a dúvida é cada vez mais verossímil, o fantástico ganha vida e, como um ser animado, ganha um corpo e torna-se quase que palpável ao leitor. A capacidade do autor em estimular no leitor essa sensação deve ser enaltecida. Manter essa tensão ao longo do texto requer habilidade e humanidade. A humanidade está diretamente com a percepção do autor em saber que tipo de história será capaz de tal intento. Mas não é só saber o tipo de história que poderá criar o fantástico, é preciso dominar a arte da palavra, selecionando vocábulos adequados e, como um arquiteto, manejar as estruturas de uma forma que prendam o leitor e o direcione à proposta almejada.

Observando o texto de Lovecraft nota-se que essa “arquitetura” inicia-se nas primeiras linhas. A escolha do narrador em primeira pessoa já aproxima muito o leitor dessa personagem. A perspectiva apresentada é a perspectiva desse narrador, que tomando para si a palavra direciona as atenções para onde quer e subjuga o leitor a acompanha-lo em suas elucubrações. O inicio do texto já em um indício do que se pode esperar do conto: “Ao narrar as circunstancias que levaram ao meu confinamento dentro deste asilo para loucos, tenho consciência de que minha situação atual vai criar uma dúvida natural sobre a autenticidade desta narrativa.”
Percebe-se nesse breve trecho a intenção de Lovecraft em sugestionar a dúvida ao leitor. É nessa incerteza que ocorre o fantástico, pois esse é a hesitação experimentada por um ser que conhece apenas as leis da natureza, em face de um acontecimento aparentemente sobrenatural (TODOROV, 1975, p. 31). O limite entre acreditar ou não é o que cria o fantástico, que lhe dá vida. A hesitação do leitor é uma condição do fantástico.

Pode-se perceber que Lovecraft figura entre o gênero como um dos principais autores. Deteve-se em um fantástico voltado às temáticas do sobrenatural, da morte, da ficção científica. Mesmo conseguindo reconhecimento apenas póstumo, deve ser visto como autor de destaque dentro do gênero fantástico, pois conseguiu por meio de suas obras cumprir com o papel ao qual se propôs. Tendo vista que esse gênero literário é um ramo estreito, mas essencial da expressão humana que atrairá uma audiência limitada dotada de uma sensibilidade especial (LOVECRAFT, 1973, p.105).

Referências:
LOVECRAFT, H.P. A TUMBA e outras histórias. Porto Alegre, L&PM, 2007.
LOVECRAFT, H.P. O Horror Sobrenatural na Literatura. R.J., Francisco Alves, 1973.

TODOROV, T. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo, Perspectiva S.A., 1975.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

AS SOMBRIAS RUÍNAS DA ALMA


O texto, no mínimo, mexe com os sentimentos mais perturbadores que possamos ter escondidos. Uma dose dupla de "realismo fantástico" deixará o leitor estarrecido com os acontecimentos. É uma realidade quase que palpável, e que surge como alternativa ao desespero. Raimundo Carrero, genial.

O ARTESÃO I

A mulher fugira há dias. talvez meses. Hospitais, cemitérios, hotéis: buscas palmo a palmo. Ismael não sabia mais as contas, desinteressado, esquivo, silencioso. No íntimo, ele dava razão: fome não sustenta amor, nem de filhos nem de senhor. Ainda tinha forças para catar lixo, pão preto, carne podre, macarrão quebrado. Luta com ratos e baratas; mãos estendidas na esmola. Marceneiro profissional, uma desmoralização. No dia da decisão, sentou-se à beira do rio, olhou fixo as águas, o desejo de mergulhar para sempre, morrer com frio, comido pelos peixes. Deitou-se. O azul, as nuvens, o sol. Poderia ficar tempos deitado, não fosse a necessidade de catar comida, os filhos sentados ou deitados no barraco, esperando. Espera e desolação. Foi que Ismael se levantou, limpou a calça, assoviando caminhou, um passo bom e miúdo. A cabeça baixa, o peito nu, fortes os braços, magro o estômago. Os meninos estavam deitados na esteira, olhos intensos e face seca, lábios finos, os cabelos colados. Calor e cansaço. Nem mudaram de posição.
Tirou da caixa as ferramentas. Não queria fitar as crianças nuas. Costelas e couro. Um menino e uma menina. Os dois, pesos da vida, tinham um e dois anos. Embora o barraco fosse em grande parte de papelão e de plástico, havia a porta de madeira e uma tábuas naquilo que chamavam parede dos fundos. Primeiro arrancou a porta. Serrou, aplainou, lixou, mediu bem os tamanhos, a forma e a fôrma. Assoviava. Um silêncio nas ruas e as vozes apagadas. 
Nem sequer sinos ou buzinas. Santo Antônio do Recife aos domingos é sempre assim: um mundo de sol e solidão. Os primeiros movimentos, bem cuidados, um cuidado de quem dobra toalha de linho engomada, branca, alva, para altar ou mesa de banquete. Ismael conhecia muito bem essas delicadezas, esse zelo de perfeição, marceneiro de grandes exigências, desempregado e faminto. Esquadro, régua, serrote, formão; As carícias de mãos firmes e finas. Um doutor.
Estava suado, limpando a testa com o braço, assoviando. terminara com todas as atenções o pequeno ataúde, um deslumbre, encomenda fina. Revestiu-o com pedaços de lençol branco. Encontrou as tachas, os pregos. E começou o segundo. Sem olhar as crianças, sem sombras no rosto. Suor e atenção redobrada. As crianças suavam, tinham fome. Fome e sede. Não podiam sequer reclamar. Olhavam o teto, fixos e distantes. Ismael deu continuidade ao trabalho. Logo o pequeno segundo ataúde também estava pronto. A olho nu mediu o prumo: os dois iguais, do mesmo tamanho, os garotos tinham os corpos parecidos, pernas e braços, as cabeças crescidas e os ombros minguados. Restava tomar um gole de aguardente. Assoviava. Tinha meia garrafa. Bebeu largo gole, passou a língua nos lábios, cuspiu. Nem ponta de cigarro. Encheu os copos dos meninos. Colocou o primeiro no colo. Ofereceu-lhe. Era a menina. Ela fez careta, recusou. Ali mesmo que também era a cozinha, misturou com água e açúcar. Não houve mais recusa. A menina tinha dois anos e parecia saborear. Nenhuma expressão nos olhos. 
Com o menino foi mais difícil: precisou não só de água e açúcar, mas também de colherinha. Tomava a aguardente quase relutando, tremendo os lábios, teve que levar uma tapa na cara. Uma tapa num menino faminto, sedento, é quase um murro, Ismael sabe. Ele cedeu, lentamente mas cedeu. Olhava o pai e foi murchando. Devagar murchando, Ismael colocou-os nos ataúdes. Acendeu dois candeeiros ao lado. Candelabros de enfeite; luz das sombras, caminho do céu. O calor aumentou e, com ele, a sede. Tomou mais gole, usou a mínima força para derrubar as tábuas de detrás do barraco. Sem luta, é claro. Mediu o seu próprio tamanho, serrou-as. Não admitia coisa desarrumada. Os meninos já estavam dentro dos ataúdes: desmaiados ou mortos. Não lhe interessava. Fez tudo com o máximo profissionalismo. Exatidão, simetria, harmonia: a perfeição que leva à Beleza absoluta. Sem grande esforço, suando e assoviando, medindo e calculando, preparou o caixão, nem um só prego para machucá-lo, um só pedaço fora do lugar, um só parafuso solto. Sem esquecer de colocar um travesseiro para o descanso e o repouso da eternidade. 
Fechou os pequenos ataúdes com pregos. Rezou. Os meninos respiravam, fiapos de respiração, respiravam. Ismael colocou-os nos braços, pesados, eram bem pesados, ele não imaginava que pesassem daquela forma. Andou, atravessou o mangue, entrou no rio, soltou os dois ataúdes brancos, branquíssimos, empurrou-os para longe, para onde ninguém pudesse alcançá-los. Voltou ao barraco. Entrou no caixão, exímio artesão, parafusou por dentro. Suor e cansaço. Agora só as lembranças dos meninos nas águas. Dois belos e perfeitos ataúdes correndo para o mar. 

Raimundo Carrero