O texto, no mínimo, mexe com os sentimentos mais perturbadores que possamos ter escondidos. Uma dose dupla de "realismo fantástico" deixará o leitor estarrecido com os acontecimentos. É uma realidade quase que palpável, e que surge como alternativa ao desespero. Raimundo Carrero, genial.
O ARTESÃO I
A mulher fugira há dias. talvez meses. Hospitais, cemitérios, hotéis: buscas palmo a palmo. Ismael não sabia mais as contas, desinteressado, esquivo, silencioso. No íntimo, ele dava razão: fome não sustenta amor, nem de filhos nem de senhor. Ainda tinha forças para catar lixo, pão preto, carne podre, macarrão quebrado. Luta com ratos e baratas; mãos estendidas na esmola. Marceneiro profissional, uma desmoralização. No dia da decisão, sentou-se à beira do rio, olhou fixo as águas, o desejo de mergulhar para sempre, morrer com frio, comido pelos peixes. Deitou-se. O azul, as nuvens, o sol. Poderia ficar tempos deitado, não fosse a necessidade de catar comida, os filhos sentados ou deitados no barraco, esperando. Espera e desolação. Foi que Ismael se levantou, limpou a calça, assoviando caminhou, um passo bom e miúdo. A cabeça baixa, o peito nu, fortes os braços, magro o estômago. Os meninos estavam deitados na esteira, olhos intensos e face seca, lábios finos, os cabelos colados. Calor e cansaço. Nem mudaram de posição.
Tirou da caixa as ferramentas. Não queria fitar as crianças nuas. Costelas e couro. Um menino e uma menina. Os dois, pesos da vida, tinham um e dois anos. Embora o barraco fosse em grande parte de papelão e de plástico, havia a porta de madeira e uma tábuas naquilo que chamavam parede dos fundos. Primeiro arrancou a porta. Serrou, aplainou, lixou, mediu bem os tamanhos, a forma e a fôrma. Assoviava. Um silêncio nas ruas e as vozes apagadas.
Nem sequer sinos ou buzinas. Santo Antônio do Recife aos domingos é sempre assim: um mundo de sol e solidão. Os primeiros movimentos, bem cuidados, um cuidado de quem dobra toalha de linho engomada, branca, alva, para altar ou mesa de banquete. Ismael conhecia muito bem essas delicadezas, esse zelo de perfeição, marceneiro de grandes exigências, desempregado e faminto. Esquadro, régua, serrote, formão; As carícias de mãos firmes e finas. Um doutor.
Estava suado, limpando a testa com o braço, assoviando. terminara com todas as atenções o pequeno ataúde, um deslumbre, encomenda fina. Revestiu-o com pedaços de lençol branco. Encontrou as tachas, os pregos. E começou o segundo. Sem olhar as crianças, sem sombras no rosto. Suor e atenção redobrada. As crianças suavam, tinham fome. Fome e sede. Não podiam sequer reclamar. Olhavam o teto, fixos e distantes. Ismael deu continuidade ao trabalho. Logo o pequeno segundo ataúde também estava pronto. A olho nu mediu o prumo: os dois iguais, do mesmo tamanho, os garotos tinham os corpos parecidos, pernas e braços, as cabeças crescidas e os ombros minguados. Restava tomar um gole de aguardente. Assoviava. Tinha meia garrafa. Bebeu largo gole, passou a língua nos lábios, cuspiu. Nem ponta de cigarro. Encheu os copos dos meninos. Colocou o primeiro no colo. Ofereceu-lhe. Era a menina. Ela fez careta, recusou. Ali mesmo que também era a cozinha, misturou com água e açúcar. Não houve mais recusa. A menina tinha dois anos e parecia saborear. Nenhuma expressão nos olhos.
Com o menino foi mais difícil: precisou não só de água e açúcar, mas também de colherinha. Tomava a aguardente quase relutando, tremendo os lábios, teve que levar uma tapa na cara. Uma tapa num menino faminto, sedento, é quase um murro, Ismael sabe. Ele cedeu, lentamente mas cedeu. Olhava o pai e foi murchando. Devagar murchando, Ismael colocou-os nos ataúdes. Acendeu dois candeeiros ao lado. Candelabros de enfeite; luz das sombras, caminho do céu. O calor aumentou e, com ele, a sede. Tomou mais gole, usou a mínima força para derrubar as tábuas de detrás do barraco. Sem luta, é claro. Mediu o seu próprio tamanho, serrou-as. Não admitia coisa desarrumada. Os meninos já estavam dentro dos ataúdes: desmaiados ou mortos. Não lhe interessava. Fez tudo com o máximo profissionalismo. Exatidão, simetria, harmonia: a perfeição que leva à Beleza absoluta. Sem grande esforço, suando e assoviando, medindo e calculando, preparou o caixão, nem um só prego para machucá-lo, um só pedaço fora do lugar, um só parafuso solto. Sem esquecer de colocar um travesseiro para o descanso e o repouso da eternidade.
Fechou os pequenos ataúdes com pregos. Rezou. Os meninos respiravam, fiapos de respiração, respiravam. Ismael colocou-os nos braços, pesados, eram bem pesados, ele não imaginava que pesassem daquela forma. Andou, atravessou o mangue, entrou no rio, soltou os dois ataúdes brancos, branquíssimos, empurrou-os para longe, para onde ninguém pudesse alcançá-los. Voltou ao barraco. Entrou no caixão, exímio artesão, parafusou por dentro. Suor e cansaço. Agora só as lembranças dos meninos nas águas. Dois belos e perfeitos ataúdes correndo para o mar.
Raimundo Carrero
