segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Recordações

Era por uma dessas noites vagarosas do inverno em que o brilho do céu sem lua é vivo e trêmulo; em que o gemer das selvas é profundo e longo; em que a soledade das praias e ribas fragosas do oceano é absoluta e tétrica.
Era a hora em que o homem está recolhido nas suas mesquinhas moradas; em que pelos cemitérios o orvalho se pendura do topo das cruzes e, sozinho, goteja das bordas das campas, em que só ele chora os mortos. As larvas da imaginação e o gear noturno afastam do campo-santo a saudade da viúva e do órfão, a desesperação da amante, o coração despedaçado do amigo. Para se consolarem, os infelizes dormiam tranquilos nos seus leitos macios!... enquanto os vermes iam roendo esses cadáveres amarrados pelos grilhões da morte. Hipócritas dos afetos humanos, o sono enxugou-lhes as lágrimas!
E depois, as lousas eram já frias! Nos seios do torrão úmido o sudário do cadáver tinha apodrecido com ele.
Haverá paz no túmulo? Deus sabe o destino de cada homem. Para o que aí repousa sei eu que há na terra o esquecimento!
Os mares pareciam naquela hora recordar-se ainda do rugido harmonioso do estio, e a vaga arqueava-se, rolava e, espreguiçando-se pela praia, refletia a espaços nas golfadas de escuma a luz indecisa dos céus.
E o animal que ri e chora, o rei da criação, a imagem da divindade, onde é que se escondera?
Tremia de frio em aposento cerrado, e sentia confrangido a brisa fresca do norte que passava nas trevas e sibilava contente nas sarças rasteiras dos maninhos desertos.
Sem dúvida, o homem é forte e a mais excelente obra da criação. Glória ao rei da natureza que tiritando geme!
Orgulho humano, qual és tu mais – feroz, estúpido ou ridículo?

                                                                   ALEXANDRE HERCULANO

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Dr. Sócrates

Enquanto a respiração lentamente se extinguia o ritmo frenético de mais de 40 mil corações pulsava. O paradoxo completava-se mostrando aos mais céticos que vida e morte são a mesma coisa.
Notícias premonitórias harmonizavam-se, pois, enquanto o quadro clínico mostrava-se a cada dia mais comprometido, o título esperado estava cada vez mais próximo. Todos intuíam o que ocorreria com ambos, no entanto, ninguém se atrevia a dizer o que aconteceria antes do ato consumado.
A morte pode ser poética, pode ser épica, pode ser histórica, como foi. Os imprudentes não ousam pensar em morte, enquanto os mais mórbidos procuram a ela se antecipar. A escolha escapa do determinismo humano, porém, quando criador e criatura se encontram “ocasionalmente”, a morte se torna então lendária.
Corações aflitos, divididos em gratidão, respeito e dor. Corações felizes, divididos em gratidão, respeito e amor.
No dia em que a esperança se renova, um homem levanta o véu da morte e adentra a história de uma nação. Um homem que talvez carregue como único demérito a falta cometida contra ele mesmo.
No silencioso quarto em que quase jaz um corpo abatido, a morte preenche o vazio que acaba se tornando presença. Não aparenta o semblante escuro ostentando sua foice fria. Hoje ela vem como anjo, trabalhando como homenagem àquele que será nesse dia sempre lembrado. E quando e gesto da vitória por esse homem não mais se manifestará, outros tantos em campo de batalha o farão, lembrando aos 40 mil corações que a vitória de hoje será para sempre dele.
Um coração pára, enquanto outros mil batem em seu lugar.
Ao final do dia a morte traz consigo a dualidade entre amor e ódio. Odiando-a por ceifar a vida de um homem admirado por muitos e, amando-a pela compaixão de fazê-lo em data tão estimada.
As lágrimas dessa nação confundem-se, mescladas entre a partida e a glória. O mito é então real, pois, se não houver sofrimento não são quem são. Humor negro que leva essa máxima ao extremo condicionando a vitória ao limite humano.
Ficam as palavras de evocação, as palavras de exaltação, as palavras de gratidão ecoando, ainda, eternamente dentro dos nossos corações.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

O Retrato Oval

Fia a análise do Conto na Universidade e gostei...
Um Clássico do Poe...

O château em que meu criado se arriscara a forçar entrada, em vez de me deixar, em minha desesperadora condição de ferido, passar uma noite ao relento, era uma daquelas construções mesclando melancolia e grandeza que por muito tempo carranquearam entre os Apeninos, tanto na realidade quanto na imaginação da Sra. Radcliffe. Ao que tudo indicava, fora abandonado havia pouco e temporariamente. Acomodamo-nos num dos quartos menores e menos suntuosamente mobiliados, que ficava num remoto torreão do edifício. Sua decoração era rica, porém esfarrapada e antiga. As paredes estavam forradas com tapeçarias e ornadas com diversos e multiformes troféus heráldicos, juntamente com um número inusual de espirituosas pinturas modernas em molduras de ricos arabescos dourados. Por essas pinturas, que pendiam das paredes não só de suas principais superfícies, mas de muitos recessos que a arquitetura bizarra do château fez necessários; por essas pinturas meu delírio incipiente, talvez, fizera-me tomar interesse profundo; de modo que ordenei a Pedro fechar os pesados postigos do quarto – visto que já era noite – acender as chamas de um alto candelabro que se encontrava à cabeceira de minha cama e abrir amplamente as cortinas franjadas de veludo negro que a envolviam. Desejei que tudo isso fosse feito para que pudesse abandonar-me, ao menos alternativamente, se não adormecesse, à contemplação das pinturas e à leitura atenta de um pequeno volume encontrado sobre o travesseiro, que se propunha a criticá-las e descrevê-las.
 
Por longo, longo tempo li, e com devoção e dedicação contemplei-as. Rápidas e gloriosas, as horas voaram e a meia-noite profunda veio. A posição do candelabro me desagradava, e estendendo a mão com dificuldade, em vez de perturbar meu criado adormecido, ajeitei-o a fim de lançar seus raios de luz mais em cheio sobre o livro.
 
Mas a ação produziu um efeito completamente imprevisto. Os raios das numerosas velas (pois eram muitas) agora caíam num nicho do quarto que até o momento estivera mergulhado em profunda sombra por uma das colunas da cama. Assim, vi sob a luz vívida um quadro não notado antes. Era o retrato de uma jovem, quase mulher feita. Olhei a pintura apressadamente e fechei os olhos. Não foi a princípio claro para minha própria percepção por que fiz isso. Todavia, enquanto minhas pálpebras permaneciam dessa forma fechadas, revi na mente a reação de fechá-las. Foi um movimento impulsivo para ganhar tempo para pensar – para me certificar de que minha vista não me enganara – para acalmar e dominar minha fantasia para uma observação mais calma e segura. Momentos depois, novamente olhei fixamente a pintura.
 
O que agora eu via, certamente não podia e não queria duvidar, pois o primeiro clarão das velas sobre a tela dissipara o estupor de sonho que me roubava os sentidos, despertando-me imediatamente à realidade.
 
O retrato, já o disse, era o de uma jovem. Uma mera cabeça e ombros, feitos à maneira denominada tecnicamente de vinheta, muito ao estilo das cabeças favoritas de Sully. Os braços, o busto e as pontas dos radiantes cabelos se dissolviam imperceptivelmente na vaga mas profunda sombra que formava o fundo do conjunto. A moldura era oval, ricamente dourada e filigranada à mourisca. Como objeto artístico, nada poderia ser mais admirável do que aquela pintura em si. Mas não seria a elaboração da obra nem a beleza imortal daquela face o que tão repentinamente e com veemência comoveu-me. Tampouco teria minha fantasia, sacudida de seu meio-sono, tomado a cabeça pela de uma pessoa viva. Vi logo que as peculiaridades do desenho, do vinhetado e da moldura devem ter dissipado instantaneamente tal idéia – e até mesmo evitado sua cogitação momentânea. Pensando seriamente acerca desses pontos, permaneci, talvez uma hora, meio sentado, meio reclinado, com minha vista pregada ao retrato. Enfim, satisfeito com o verdadeiro segredo de seu efeito, caí de costas na cama. Descobrira o feitiço do quadro numa absoluta naturalidade de expressão, a qual primeiro espantou-me e por fim me confundiu, dominou-me e me aterrorizou. Com profundo e reverente temor, recoloquei o candelabro na posição anterior. Sendo a causa de minha profunda agitação colocada assim fora de vista, busquei avidamente o volume que tratava das pinturas e suas histórias. Dirigindo-me ao número que designava o retrato oval, li as vagas e singulares palavras que se seguem:
 
Era uma donzela de raríssima beleza, não mais encantadora do que cheia de alegria. Má foi a hora em que viu, amou e desposou o pintor. Ele, apaixonado, estudioso, austero, e tendo já em sua Arte uma esposa; ela, uma donzela de raríssima beleza, não mais encantadora do que cheia de alegria; toda luz e sorrisos, e travessa como uma corça nova; amando e acarinhando todas as coisas; odiando apenas a Arte, sua rival; temendo só a paleta, os pincéis e outros desfavoráveis instrumentos que a privavam do rosto do amado. Era, portanto, uma coisa terrível para essa dama ouvir o pintor falar de seu desejo de retratar justo sua jovem esposa. No entanto, ela era humilde e obediente, e posou submissa por muitas semanas na escura e alta câmara do torreão, onde a luz caía somente do teto sobre a pálida tela. Mas ele, o pintor, glorificava-se com sua obra, que continuava hora após hora, dia após dia. E era um homem apaixonado, impetuoso e taciturno, que se perdia em devaneios; de maneira que não queria ver que a luz espectral que caía naquele torreão isolado debilitava a saúde e a vivacidade de sua esposa, que definhava visivelmente para todos, exceto para ele. Contudo, ela continuava a sorrir imóvel, docilmente, porque viu que o pintor (que tinha grande renome) adquiriu um fervoroso e ardente prazer em sua tarefa e trabalhava dia e noite para pintar a que tanto o amava, aquela que a cada dia ficava mais desalentada e fraca. E, em verdade, alguns que viram o retrato falaram, em voz baixa, de sua semelhança como de uma poderosa maravilha, e uma prova não só da força do pintor como de seu profundo amor pela qual ele pintava tão insuperavelmente bem. Finalmente, como o trabalho se aproximava da conclusão, ninguém mais foi admitido no torreão, pois o pintor enlouquecera com o ardor da obra, raramente desviando os olhos da tela, mesmo para olhar o rosto da esposa. Não queria ver que as tintas que espalhava na tela eram tiradas das faces da que posava junto a ele. E quando muitas semanas nocivas se passaram e pouco restava a fazer, salvo uma pincelada na boca e um tom nos olhos, o espírito da dama novamente bruxuleou como a chama no bocal da lâmpada. Então, a pincelada foi dada e o tom aplicado, e, por um momento, o pintor se deteve extasiado diante da obra em que trabalhara. Porém, em seguida, enquanto ainda a contemplava, ficou trêmulo, muito pálido e espantado, exclamando em voz alta: ‘Isto é de fato a própria Vida!’ Voltou-se repentinamente para olhar a amada: – Estava morta!”
 
  Edgar Allan Poe

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

CRYSTAL LAKE

A superfície do lago assemelhava-se a um espelho. Refletindo algumas nuvens perdidas no céu e os pássaros, que fugidios rompiam o silêncio acomodando-se em seus ninhos no final da tarde. Sentada no deck próximo a cabana de sua família Suse acompanhava o desfecho do dia, olhar preso no horizonte, acompanhava a despedida do sol, que majestosamente desaparecia.
A água estaria fria? A curiosidade era instigante, e tocando levemente os pés na água arrepiou-se com a temperatura, estava fria. Ainda assim era prazeroso, e com um pouco mais de vontade ela arriscou sentir a água tocar-lhe até os joelhos. Arrepiou-se novamente, mas sentia-se bem, o frio da água equilibrava-se com o sangue quente em seu corpo.
Com as mãos apoiadas um pouco atrás do corpo, e chacoalhando os pés Suse inclinou a cabeça para trás, olhos fechados, um sorriso quase tímido marcou seu rosto. O sol já havia partido, era hora de voltar.
Suse tirava os pés da água, quando sentiu que algo passava perto de suas pernas dentro do lago. Assustou-se, e com um traço de desespero puxou as pernas para cima do deck. Seu coração acelerado, e os olhos assustados com certa distância procuravam o motivo de seu susto. Mas as águas já estavam escuras devido ao avançar do tempo, Suse não conseguiu enxergar nada.
Levantou-se no deck e olhou por um minuto a sua volta. Tentou respirar com mais calma, e racionalmente tentava encontrar alguma explicação, provavelmente um peixe, era o mais óbvio. Virando-se e indo em direção a casa ela sorriu novamente. As vozes que vinham da cabana acalmaram seus pensamentos, podia ouvir sua mãe conversando, a risada que vinha da cozinha e já via a luz acesa na varanda.
O som da água a assusta novamente, parecia que algo se agitava atrás dela. Olhando para a beirada do deck ela não enxerga nada. Pequenas ondulações ainda podiam ser vistas, era algo grande. O medo já era maior e decida a correr virou-se na direção oposta pronta para fugir. Quando deu os primeiros passos foi surpreendida, a agitação nas águas agora estava a sua frente, perto da saída do deck. Suse pensou em gritar, mas sua voz não saia, apenas lágrimas escapavam de seus olhos, desesperada ela tentava entender o que acontecia.
Parada onde estava, sentiu medo de continuar a caminhar. O que quer que estivesse dentro da água acompanhava suas decisões, antecipando-se a elas.  O deck era estreito, Suse pensou que pudesse ser atacada por qualquer um dos lados. Precisava agir logo e sair dali. Deu um passo a frente, e mais um e com mais confiança avançou. Mas a água movimentou-se outra vez, bem debaixo de seus pés. E com um estrondo o deck se abriu a sua frente, jogando longe os pedaços de madeira que outrora serviam de apoio.
Suse gritou, mas o barulho vindo da casa abafava o som de desespero que rompia a noite. O deck começava a afundar. E afastando-se ela tentava se equilibrar na direção contrária. Mas o deck começou a se afastar, indo para o meio do lago, parecia estar sendo controlado. Ela gritava, chorava e agonizava imaginando o que estaria acontecendo. De onde estava ainda podia ver a cabana. Chamava pelos pais, ainda tinha esperança que pudessem ouvi-la.
O deck baixando começou a afundar. E seus gritos roucos, já com a garganta dolorida não eram tão altos. Os pés já estavam molhados e a água subindo já alcançava sua cintura, estava dentro da água. O frio já não era mais prazeroso, a temperatura baixa das águas do lago calaram-na de vez. Talvez ela conseguisse sair nadando. Em desespero Suse começou a mover-se, em pânico ela enxergava o barranco e com toda sua força buscava alcançar seu objetivo.
Ouviu a voz de sua mãe que lhe chamava, mas ela não tinha forças para responder. O barranco estava perto, mais alguns metros e estaria fora da água. Seu coração já tentava se acalmar, a voz de sua mãe parecia estar mais perto. Suspirando ela tocou com uma das mãos o barranco. Estava a salvo.
 A água agitou-se novamente, e olhando para trás Suse tentou agarrar-se depressa em qualquer coisa que pudesse ajudá-la a sair da água. A onda avolumou-se como se algo submerso se aproximasse, e quando chegou perto dela diminuiu como se desaparecesse. Suse agarrou uma raiz próxima de onde estava e tentou puxar o corpo para fora do lago.
Algo a segurou pelos pés e seus olhos ainda tiveram tempo de ver a cabana antes de ser arrastada para as profundezas do lago.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

A REVELAÇÃO DE ANABOTH

Como é difícil viver minha vida! Sentia raiva de minhas escolhas que aparentavam ter sido boas, mas que sempre me decepcionavam. Mas eu lutava comigo mesmo contra esse sentimento, dizendo sozinho em frente ao espelho que tudo iria acabar, assim que meu plano estivesse concretizado. Beatriz era um paliativo aos meus acessos de raiva, e o toque frio de sua pele ou seus olhos inquiridores me levavam para um mundo mais tranqüilo. Ela era a escolha que mais arrependimento me fazia sentir. Ao mesmo tempo em que eu esquecia os meus tormentos ao seu lado, sabia que ela era uma ilusão, nada mais do que magia negra e recalque de um homem desesperado.
Meu plano estava por se findar, aquela noite eu terminaria com todo meu sofrimento e traria de volta a vida aqueles que nunca deveriam ter me deixado, finalmente eu seria Deus. Beatriz também fazia parte dos planos, mas o que me torturava era pensar que uma vez de volta a vida, ela poderia me abandonar, e não mais amar-me como nesses inesquecíveis dias de morta-viva. Seria um risco, mas teria que corrê-lo, não poderia viver uma mentira eternamente.
A noite estava convidativa para um último sacrifício. No entanto, não seria necessário, pois essa parte do plano seria realizada em meu porão, e p único sacrifício seria o meu, teria que desistir de minha vida e entregá-la ao décimo terceiro demônio em troca de seus poderes. Não sentiria falta de minha alma, eu já havia condenado ao inferno de qualquer maneira depois de todas minhas experiências. Viver sem alma poderia doer menos, era o que eu esperava.
O círculo de evocação foi feito no chão com o sangue de um quadrúpede qualquer, Beatriz o havia matado, e o sangue ainda quente do animal cobria grande parte dos traços no chão. Em pequenos círculos estavam depositados os órgãos necessários ao ritual. Todas as doze garrafas contendo restos mortais de alguns humanos ocupavam suas tão esperadas posições. As pedras em volta do circulo, cada uma com a identificação de uma das antigas runas de Nug-Soth deixavam o ambiente ainda mais assustador. O horário previsto se aproximava, e como um filme passava em meus pensamentos, o momento tão esperado estava há poucos minutos, a minha espera.
Deitando-me no centro do circulo iniciei o ritual. As sombras começaram a se adensar ao meu redor e em seguida as risadas estrondosas romperam o silencio ecoando nas paredes de pedra. Meu corpo estava estranho, sentia calafrios e chegava a tremer devido aos espasmos. O necronomicon estava em minhas mãos e finalmente li o nome daquele que seria o último e mais poderoso dos demônios. Anaboth. Ele me revelaria todos os segredos da necromancia fazendo que me tornasse manipulador da morte.
Cortando minhas mãos espalhei meu próprio sangue sobre a estrela no centro do círculo, baixei a cabeça como em reverencia e proferi as palavras corretas. Quando terminei de conjurá-las respirei fundo e sorri, agora estava feito, eu havia terminado. As velas se apagaram ao meu redor, e toda a escuridão tomou conta do porão. Ouvi batidas surdas a minha volta, como que passadas pesadas que me cercavam, um vento frio que eu não saberia descrever de que direção vinha soprava sorrateiro. Meu nome foi dito baixo, mas era familiar. Era a voz de Beatriz.
Levantei minha cabeça e procurando cegamente no escuro tentava enxergar alguma coisa, parecia que algumas formas se distinguiam, mas logo desapareciam. E sem conseguir me conter chamei por ela. O sussurro se repetiu bem perto de mim dessa vez. Sentia-me confuso, afinal eu estava conjurando meu último demônio, esperava que ele se revelasse a mim. No entanto, tudo o que me parecia era que Beatriz estava escondida e por algum motivo Anaboth não viera.
As velas acenderam-se subitamente, porém suas luzes eram mais fortes, o fogo que as consumia era diferente, algo que nunca havia visto antes, senti vontade de tocá-lo, mas me detive. As sombras não paravam de me rodear, as paredes estavam repletas delas, como em uma tempestade, pareciam folhas sopradas para todos os lados. O sangue brilhava no círculo de evocação, como pedras preciosas refletiam a luz das velas. As garrafas a minha volta estavam vazias, nem mesmo o formol havia sobrado, quem quer que tenha feito aquilo, levou tudo.
Comecei a inquietar-me, alguma coisa estava errada, onde estaria meu demônio? Olhando em todos os cantos não notei nem a presença de Beatriz. Por que eu havia escutado sua voz a me chamar? Pensei que talvez tivesse cometido algum erro, alguma parte do ritual deve ter sido realizada de forma incorreta, ou quem sabe as palavras. Eu devia ter proferido alguma palavra de forma errada, e procurando o Necronomicon ao meu redor fui certificar-me. Não o encontrei.
Um doce gracejo me tirou a atenção, era a risada de Beatriz, que aumentando aos pouco invadia todo o porão. Percebi sua sombra perto da escada, e ela se aproximava do circulo onde eu estava. Assustei-me com sua aparência, sua pele não trazia mais a suavidade que me envolvera, estava amarelada e áspera, parecia enrugada. Seus olhos eram outros novamente, nada mais da transparência, eram mais amarelados que a sua pele, como os de uma cobra.
Não entendia o que era aquilo, e perguntei por Anaboth:
- Onde está o meu demônio? O que significa tudo isso? – e respondendo em meio a uma risada estridente ela me disse:
- Estou bem aqui!
Como eu não esboçava nenhuma reação ela continuou:
- Mortal idiota! Por acaso pensou que poderia dominar um demônio? Achou realmente que seria tudo tão fácil assim? Alguns corpos, alguns restos, algumas evocações e pronto! Teria o necronomicon aos seus pés? Vocês humanos são muito patéticos!
Eu tentava me mexer, mas não conseguia, tentava me levantar, mas estava imóvel, estático.
- Não consegue se mexer não é mesmo? E nunca irá conseguir, todas essas marcas nesse circulo que você mesmo fez te prenderam aí dentro. Você está preso!
Uma pergunta apenas consegui formular:
- Por que Beatriz?
E cuspindo em mim ela respondeu:
- Eu não sou Beatriz, sou Anaboth! Beatriz nunca existiu tudo sempre foi uma farsa! Eu precisava de você, esse sempre foi o plano, e você o executou. Você sempre foi à presa ideal, com todas as suas frustrações e inseguranças. O livro chegou até você como planejado, e eu só precisava de tempo para fazê-lo acreditar. Porém era necessário algo que você não tinha para concretizar meu plano, e Beatriz foi a isca perfeita.
- Mas como pode ser? Esse livro esteve comigo há muito tempo, guardado, escondido!
- Nunca se perguntou sobre a forma como esse livro chegou as suas mãos? – perguntou Anaboth, e continuou:
- Sua paixão súbita por Beatriz era necessária, pois sem esse sentimento lamentável eu não conseguiria voltar! E agora, através de você, eu irei me libertar e seu mundo medíocre irá me acolher!
Anaboth adentrou o circulo onde eu permanecia imóvel. Ele segurou-me pela cabeça, e uma dor horrível percorreu meu corpo, sentia como se estivesse em chamas, fui perdendo o fôlego e os sentidos. Não senti mais nada.
Não sei quanto tempo passou, quando abri os olhos respirei aliviado, pois havia sido um sonho. Tentei andar, mas não consegui, eu estava preso. Apalpando ao meu redor percebi que eram paredes de vidro. Comecei a me lembrar, eu ainda estava no porão. A minha frente um corpo estava estirado no meio do circulo de evocação, e assim como eu tentava entender onde estava, pois apalpava o chão ao seu redor.
Ele se levantou finalmente e pude ver quem era. Era eu. Meu corpo se levantou e sacudindo a poeira dos ombros, olhou-me sorrateiro e sorriu. Anaboth havia conseguido. Eu estava dentro de um das garrafas, ou melhor, a minha alma, presa por toda a eternidade. Outras garrafas estavam perto de mim, e eu pude reconhecê-los. Eram as vítimas de minhas loucuras noturnas, presas como eu. Em uma garrafa ao meu lado vi Beatriz, ela olhou-me, mas desviou o olhar, eu era um estranho. Eternamente preso ao lado de alguém que não me conhecia.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

O CORAÇÃO DENUNCIADOR

Pausa do Necronomicon... Para um dos mais famosos autores do gênero...

É verdade! Tenho sido muito, muito, terrivelmente nervoso. E sou. Mas por que dizer que sou louco? A doença aguçou meus sentidos, não destruiu nem embotou. Acima de tudo, havia o sentido de ouvir agudamente. Ouvi todas as coisas do céu e da terra, ouvi muitas coisas do inferno. Como é, então, que sou louco? Prestem atenção! E observem com que sanidade com que tranqüilidade posso lhes contar a história toda.
É impossível dizer como é que a idéia surgiu primeiro no meu cérebro. Mas, assim que foi concebida, asombrou-me noite e dia. Não havia motivo. Não havia paixão. Eu adorava o velho. Ele nunca me enganara. Nunca me insultara. Eu não desejava seu ouro. Será que foi o seu olhar? Sim, foi isso! Um dos meus olhos parecia o de um abutre – um olho azul-pálido, com uma membrana de catarata. Sempre que me fixava, meu sangue enregelava; assim, pouco a pouco, bem devagar, imaginei tirar a vida do velho e me libertar daquele olho para sempre!
Agora, é essa a questão. Vocês acham que sou louco. Os loucos não sabem de nada. Mas vocês deveriam ter-me visto. Ter visto como fiz tudo com tanto cuidado, com que prudência, com que dissimulação agi! Nunca fui mais gentil com o velho do que durante a semana antes de matá-lo. E toda noite, por volta da meia-noite, eu girava a maçaneta da sua porta e a abria – com que delicadeza! E daí, quando conseguia uma abertura suficiente para minha cabeça, eu colocava uma lanterna com tampa, toda coberta, para não haver o brilho de nenhuma luz, depois enfiava a cabeça. Ah, vocês ririam se vissem como eu enfiava com enorme cuidado! Mexia-me devagar, muito, muito devagar, para não atrapalhar o sono do velho. Levava uma hora para colocar toda a cabeça na abertura, para que pudesse vê-lo deitado em sua cama. Ah, um louco seria tão esperto? E aí, quando minha cabeça estava bem no quarto, eu abria a lanterna cuidadosamente oh, com tanto cuidado, com cuidado (porque a dobradiça da tampa rangia) ...eu abria de modo que um raio de luz, único e fino, caísse sobre o olho de abutre. E assim fiz durante sete longas noites – cada noite bem a meia-noite – mas sempre deparei com o lho fechado. Logo, era impossível fazer o trabalho, pois não era o velho que me transtornava, mas seu Olho Mau. Toda manhã, quando nascia o dia, eu ia ousadamente para seu quarto e falava corajosamente com ele, chamando-o pelo nome com um tom caloroso, e perguntava como era passara a noite. Portanto, vocês vêem que ele precisava ser um velho muito esperto para desconfiar que toda noite, bem a meia-noite, eu o espiava enquanto dormia.
Na oitava noite, fui mais cuidadoso do que de costume ao abrir a porta. O ponteiro de minutos de um relógio se mexeria mais depressa que eu. Nunca, antes daquela noite, eu sentira a extensão de meus poderes – da minha sagacidade. Mal podia conter meus sentimentos de triunfo. Pensar que lá estava eu, abrindo a porta, pouco a pouco, e ele nem sonhava com meus atos ou pensamentos secretos. Ri gostosamente com essa idéia; talvez ele tenha me ouvido, pois se mexeu de repente na cama, como que assustado. Agora vocês podem pensar que fui embora – mas não.  O quarto estava escuro como breu, com uma escuridão densa (as janelas estavam bem fechadas por causa do medo que tinha dos ladrões), e assim eu sabia que ele não conseguia ver a porta se abrindo, logo continuei empurrando-a mais e mais.
Minha cabeça já estava dentro e eu estava a ponto de abrir a lanterna quando meu polegar escorregou no fecho de lata e o velho se levantou na cama, gritando:
- Quem está aí?
Fiquei bem quieto e não disse nada. Durante uma hora não movi um músculo e, enquanto isso, não o ouvi deitando-se. Estava lá imóvel, sentado na cama e escutando; bem como eu fizera, noite após noite, ouvindo a morte rondar pelas paredes.
Depois ouvi um leve gemido, e eu sabia que era o gemido do terror mortal. Não era um gemido de dor ou angustia- oh não!, era o som baixo e abafado que surge das profundezas da alma quando ela se sobrecarrega de medo. Conhecia bem esse som. Muitas noites, à meia-noite, quando o mundo estava dormindo, ele surgia do meu próprio peito, aprofundando, com um eco terrível, os horrores que me assaltavam. Digo que conhecia bem isso. Sabia que o velho sentia e tinha pena dele, embora risse por dentro. Sabia que ele estivera acordado desde o primeiro barulhinho, quando se virara na cama. Desde então seus medos cresceram. Ele tentara pensar que não tinha importância, mas não conseguia. Ficara dizendo a si mesmo: não é nada além do vento na chaminé, é só um rato atravessando o chão. Ou é apenas um grilo que fez barulho por um instante. Sim, ele tentara se confrontar com essas suposições, mas fora tudo em vão. Tudo em vão. Pois a Morte, ao se aproximar dele, projetara sua sombra negra à frente e envolvera a vítima. E era a influencia macabra da sombra imperceptível que o fazia sentir- embora não a pudesse ver nem ouvir- , sentir a presença de minha cabeça em seu quarto.
Após esperar muito tempo, com muita paciência, sem ouvi-lo deitar-se, resolvi abrir uma pequena – muito, muito pequena fenda na lanterna. Abri-a- não podem imaginar com que cuidado- até que, enfim, um único raiozinho, como o fio de uma aranha, saiu da fenda e caiu sobre o olho de abutre.
Estava aberto – muito, muito aberto- e fiquei furioso ao vê-lo. Vi-o com perfeita nitidez- bem com aquele azul desbotado, com a repulsiva membrana cobrindo-o, que me enregelava até a medula dos ossos. Mas não pude ver nada mais do rosto ou do corpo do velho, pois dirigi o raio, como que por instinto, para o lugar maldito.
E agora- eu não lhes disse que o que tomam por loucura nada mais é do que acuidade dos sentidos? – chegou aos meus ouvidos um som baixo, surdo, rápido, como o de um relógio envolvido em algodão. Também conhecia bem esse som. Era o bater do coração do velho. Ele aumentou minha fúria, como o rufar de um tambor estimula o soldado a ter coragem.
Mas mesmo então me controlei e fiquei imóvel. Mal respirava. Segurava a lanterna sem me mexer. Tentei manter o mais fixo possível o raio sobre o olho. Enquanto isso, o tam-tam infernal do coração aumentava. Tornou-se cada vez mais rápido e mais alto. O terror do velho deveria ser extremo! Ficava mais alto, repito, mais alto a cada instante, entendem? Eu lhes disse que sou nervoso, sou mesmo. E agora, naquela hora morta da noite, no meio do assustador silencio daquela casa velha, um barulho tão estranho como esse me excitava rumo ao terror incontrolável. Porém, por alguns minutos eu me controlei e fiquei quieto. Mas o bater ficou mais alto, mais alto! Pensei que o coração explodiria. E uma nova ansiedade me dominou: o som poderia ser ouvido por um vizinho! A hora do velho chegara! Com um grito alto, abri a lanterna e pulei para o quarto. Ele gritou uma vez – só uma. Num instante joguei-o no chão e virei a cama pesada sobre ele. Daí sorri alegremente ao descobrir que o trabalho já estava feito. Mas, por muitos minutos, o coração continuou batendo, com um som abafado. Mas isso, porém, não me preocupou; não seria ouvido pela parede. Finalmente parou. O velho estava morto. Afastei a cama e examinei o cadáver. Sim, estava morto, bem morto. Coloquei a mão sobre o coração e a deixei ali vários minutos. Não havia pulsação. Estava completamente morto. O olho não me perturbaria mais.
Se vocês acham ainda que sou louco, não pensarão mais isso ao lhes contar as precauções habilíssimas que tomei para esconder o corpo. A noite avançava e trabalhei apressadamente, mas em silencio. Primeiro, esquartejei o corpo. Cortei a cabeça, os braços e as pernas. Depois, tirei três tábuas do assoalho e coloquei tudo entre os vãos. Recoloquei, então, as tábuas muito habilmente, com todo o cuidado; nenhum olho humano- nem mesmo o dele -  poderia ter descoberto nada errado. Não havia nada para lavar, nenhuma mancha de qualquer tipo, nenhuma marca de sangue. Tivera todo cuidado de evitá-las. Uma tina resolvera tudo - ah! ah!
Quando acabei o trabalho, eram quatro horas – ainda estava escuro como à meia-noite. Quando o sino soou a hora, bateram na porta da rua. Fui abri-la bem à vontade, pois o que tinha agora a temer? Entraram três homens que se apresentaram, com total delicadeza, como policiais. Um vizinho ouvira um grito durante a noite; houvera suspeita de um crime e foram dar queixa na delegacia, de onde eles (os policiais) foram enviados para investigação.
Sorri – pois o que eu tinha a temer? Disse que os cavalheiros eram bem vindos. O grito, afirmei, tinha sido meu, por causa de um sonho. Levei os visitantes a uma ronda por toda a casa. O velho, mencionei, estava fora, no campo. Levei os visitantes por toda a casa. Instei-os a dar busca – cuidadosamente. Levei-os, enfim, ao quarto dele. Mostrei-lhes seus tesouros, seguro, imperturbável. No entusiasmo da minha confiança, trouxe cadeiras para o quarto e convidei-os a descansar ali, enquanto eu, na audácia louca do meu triunfo perfeito, coloquei minha cadeira em cima do lugar exato em que repousava o cadáver da vítima.
Os policiais estavam satisfeitos. Meu jeito os convencera. Eu estava muito à vontade. Sentaram-se e, enquanto eu respondia alegremente, a conversa passou a coisas familiares. Mas, pouco depois, senti que empalidecia e desejei que fossem embora. Meu coração começou a doer e imaginei um latejar nos ouvidos. Mas eles ficaram sentados ali, conversando. O latejar se tornou mais distinto; continuava e cada vez mais nítido. Falei mais e mais, para escapar da sensação, mas ela continuou e ganhou uma grande clareza, até que enfim, que o barulho não era dentro do meu ouvido.
Então, sem dúvida, fiquei bem pálido – mas falei mais ainda e com uma voz mais alta. Porém, o som aumentava – e o que poderia fazer? Era um som baixo, surdo, rápido – como o de um relógio envolvido em algodão. Eu respirava com dificuldade, mas os policiais pareciam não notar nada. Falei mais depressa e com mais veemência, contudo o som crescia constantemente. Levantei-me e fiz perguntas sobre bobagens, bem alto e gesticulando muito. Mas o barulho continuou aumentando. Por que eles não iam embora? Andei de uma lado para outro com passos largos e pesados, como que excitado até a fúria pelas observações dos homens, mas o barulho continuou aumentando. Oh! Meu Deus! O que poderia fazer? Espumei, enfureci-me, xinguei! Girei a cadeira em que estava sentado e a arrastei sobre as tábuas, mas o barulho soou acima de tudo e aumentou sem parar. Ficou mais alto, mais, mais! E os homens continuaram conversando gostosamente, sorrindo. Era possível não terem ouvido? Deus Todo-Poderoso! Não, não! Eles ouviram – desconfiavam – sabiam! – estavam zombando do meu horror! – pensei isso, pensei. Mas qualquer coisa era melhor do que essa agonia! Qualquer coisa seria preferível a essa zombaria! Não agüentava mais aqueles sorrisos hipócritas! Senti que precisava gritar ou morrer! – e agora – outra vez! Ouçam! Mais alto! Mais! Mais! Mais!...
- Bandidos! – gritei. – Não finjam mais! Confesso meu crime! Arranquem as tábuas! Aqui, aqui! É o bater desse coração horrível!
EDGAR ALLAN POE

domingo, 26 de junho de 2011

A FERA DA CAVERNA

PAUSA PARA O GÊNIO............ H.P. LOVECRAFT

A conclusão terrível que vinha se impondo gradualmente sobre minha mente confusa e relutante era agora uma certeza aterradora. Eu estava perdido, completa e desesperadamente perdido nas vastas e labirínticas reentrâncias da Caverna Mamute. A situação se apresentava de tal forma que, por mais que forçasse a visão, em nenhuma direção era possível distinguir qualquer objeto capaz de servir como um ponto de referência que me colocasse no caminho da rua. Que eu nunca mais contemplaria a luz abençoada do dia nem correria os olhos pelos montes e vales aprazíveis do belo mundo exterior minha razão não podia mais alimentar a menor descrença. A esperança havia partido. Entretanto, doutrinado como fui por uma vida de estudos filosóficos, não deixei de sentir uma grande satisfação com minha conduta desapaixonada; pois apesar de ter lido freqüentemente sobre os frenesis desvairados a que as pessoas vítimas de situações similares se entregam, não senti nada disso, e fiquei calmo tão logo percebi claramente que havia perdido o senso de orientação.
            Tampouco o pensamento de que provavelmente teria me afastado além dos limites máximos de uma busca comum fez com que abandonasse minha postura sequer por um instante. Se devo morrer, refleti, essa caverna terrível e majestosa será tão bem-vinda como uma sepultura quanto a que qualquer cemitério de igreja poderia me proporcionar, uma idéia que trazia consigo mais tranqüilidade do que desespero.
A fome seria meu destino final, disso eu tinha certeza. Alguns, eu sabia, tinham enlouquecido numa circunstância como essa, mas eu sentia que aquele não seria o meu fim. O desastre que vivia era resultado de minha inteira responsabilidade, já que, sem avisar o guia, havia me separado do grupo ordeiro de visitantes; e, perambulando por mais de uma hora em caminhos proibidos da caverna, vi-me incapaz de retornar pelas curvas tortuosas que havia seguido desde que abandonara meus companheiros.
A tocha já começava a apagar-se; logo eu seria coberto pela escuridão total e quase palpável das entranhas da terra. Parado na luz instável e decrescente, refleti em vão sobre as circunstâncias exatas do fim que se aproximava. Lembrei dos relatos que ouvira da colônia de tuberculosos que passara a morar nessa gruta gigantesca buscando curar-se com a atmosfera aparentemente sadia do mundo subterrâneo, com sua temperatura estável e uniforme, seu ar puro e ambiente sossegado, mas que haviam encontrado em vez disso uma morte estranha e horripilante. Eu vira os escombros tristes das suas cabanas malconstruídas quando passara por elas com o grupo e tinha me perguntado que influência antinatural uma longa estada nessa caverna imensa e silenciosa exerceria sobre um homem saudável e vigoroso como eu. Pois chegara a oportunidade de tirar essa dúvida, afirmei severamente, desde que a falta de alimento não acarretasse uma partida muito rápida dessa vida.
            Quando os últimos raios intermitentes da tocha desapareceram aos poucos até a obscuridade, decidi que não deixaria uma pedra sem revirá-la e nenhum meio possível de saída seria negligenciado. Assim sendo, reunindo toda a capacidade dos meus pulmões, dei uma série de gritos na esperança vã de chamar a atenção do guia com meu clamor. Enquanto chamava, entretanto, tinha certeza de que as súplicas não tinham efeito algum e que minha voz aumentada e refletida pelas inumeráveis plataformas do labirinto escuro à minha volta não chegavam a nenhum ouvido a não ser os meus.
De repente, no entanto, parei para prestar atenção quando imaginei ter ouvido o som suave de passos que se aproximavam no chão rochoso da caverna.
            A minha libertação seria conseguida tão cedo? Todas as apreensões terríveis então haviam sido por nada e o guia teria notado a minha ausência desautorizada e seguido o meu curso procurando-me nesse labirinto de calcário? Enquanto essas indagações felizes surgiam no meu cérebro, eu estava prestes a renovar meus gritos a fim de que me descobrissem de uma vez, quando num instante minha alegria transformou-se em horror. Minha audição, que sempre fora sensível e que agora estava mais aguçada ainda com o silêncio completo da caverna, transmitiu para minha compreensão entorpecida a consciência inesperada e terrível de que aqueles passos não eram como os de qualquer homem mortal. No silêncio fantasmagórico dessa região subterrânea, o caminhar do guia calçando botas teria soado como uma série de batidas secas e incisivas. Os impactos eram suaves e furtivos, como os das patas de algum felino. Além disso, quando prestei bastante atenção, eu parecia acompanhar as batidas de quatro pés em vez de dois.
            Eu estava convencido agora que tinha provocado e atraído alguma fera selvagem com meus próprios gritos, talvez um leão das montanhas que se perdera acidentalmente dentro da caverna. Talvez, considerei, o Todo-Poderoso tenha escolhido para mim uma morte mais rápida e misericordiosa do que a da fome; o instinto de autopreservação, entretanto, que nunca estivera completamente adormecido, foi incitado em meu peito e, embora a fuga do perigo iminente pudesse apenas me poupar de um fim mais sombrio e prolongado, decidi-me mesmo assim a vender a vida o mais caro possível. Por mais estranho que possa parecer, minha mente não concebeu outra intenção por parte do visitante a não ser a hostilidade. Dessa maneira, não fiz ruído algum, na esperança de que a fera desconhecida perdesse seu senso de direção na ausência de um som que a guiasse como ocorrera comigo e, assim, passasse ao largo. Mas essa esperança não estava destinada a se concretizar, pois os passos estranhos avançavam firmes. Tendo evidentemente sentido meu cheiro, o animal poderia sem dúvida segui-lo a uma grande distância, algo factível numa atmosfera como a de uma caverna tão absolutamente livre de todas as influências que pudessem distraí-lo.
            Vendo, portanto, que eu tinha de estar armado para defender-me contra um ataque sinistro e oculto no escuro, tateei em meu redor em busca de fragmentos maiores de rochas que estavam espalhados por todas as partes do chão da caverna, e, pegando uma em cada mão para usá-las naquele momento, esperei com resignação pelo resultado inevitável. Enquanto isso o ruído hediondo das patas se aproximava. O comportamento da criatura era certamente muito estranho. A maior parte do tempo os passos pareciam ser de um quadrúpede, caminhando singularmente sem um ruído uníssono entre as patas traseiras e dianteiras, entretanto, em intervalos breves e esporádicos, eu imaginava que apenas duas patas estavam envolvidas no processo de locomoção. Fiquei a me perguntar que espécie de animal iria confrontar-me; ele devia ser alguma fera azarada que pagara por sua curiosidade de investigar uma das entradas da gruta temível com um confinamento perpétuo nessas reentrâncias intermináveis. Sem dúvida ela obtinha como alimento o peixe sem olhos, os morcegos e os ratos da caverna, assim como alguns dos peixes comuns que são levados pelas cheias do Rio Grande, que se comunica de alguma maneira oculta com as águas da caverna. Eu ocupava minha vigília terrível com conjecturas grotescas sobre quais alterações a vida na caverna havia provocado na estrutura física da fera, lembrando das aparências pavorosas atribuídas pela tradição local aos tuberculosos que tinham morrido após uma longa permanência nela. Então lembrei subitamente que, mesmo tendo sucesso em abater meu antagonista, eu nunca contemplaria a sua forma, pois minha tocha há muito apagara e eu estava completamente desprovido de fósforos. A tensão no meu cérebro agora era espantosa. Minha fantasia desordenada evocava formas hediondas e temíveis na escuridão sinistra que me envolvia e que na realidade parecia fazer pressão sobre meu corpo. Então os passos medonhos começaram a se aproximar cada vez mais. Achei que deixaria escapar um grito estridente, mas mesmo que fosse suficientemente indeciso para tentar algo do gênero, minha voz mal responderia, pois estava petrificado e preso ao chão. Eu duvidava se o braço direito me deixaria arremessar um projétil quando chegasse o momento crucial. Nesse instante o pat, pat regular dos passos se aproximava e agora estava muito próximo. Eu podia ouvir a respiração cansada do animal, e, aterrorizado como estava, percebi que ele tinha de vir de uma distância considerável, já que estava similarmente fatigado. De repente o feitiço foi quebrado. A mão direita, guiada pela minha audição sempre confiável, jogou com força total a pedra afiada de calcário na direção do ponto no escuro de onde emanavam a respiração e os passos; e, para meu deleite narrativo, quase acertou o alvo, pois ouvi a criatura pulando e pousando um pouco distante, onde pareceu fazer uma pausa.
            Tendo reajustado a mira, lancei o segundo projétil e dessa vez mais eficazmente, pois ouvi tomado de alegria quando a criatura desabou no que parecia ser um colapso completo, e evidentemente permaneceu imóvel no chão. Quase dominado pelo alívio enorme que sentia, cambaleei de costas até a parede, mas a respiração dela continuava em inspirações e expirações pesadas e ofegantes, então percebi que só a tinha ferido. E agora todo o desejo de examinar a criatura passara. Por fim algo associado a um medo infundado e supersticioso entrou em meu cérebro, e não me aproximei do corpo, tampouco continuei a jogar pedras nele a fim de completar o extermínio da sua vida. Em vez disso, corri o mais rápido que pude na direção de onde viera, ou na direção mais próxima disso que conseguia estimar na condição enlouquecida que me encontrava. Subitamente ouvi um barulho, ou melhor, uma seqüência regular de barulhos. No instante seguinte tinham se limitado a uma série de estalos secos e metálicos. Dessa vez não havia dúvida. Era o guia. E então eu chamei, gritei, berrei, até guinchei de alegria quando contemplei nos arcos em abóbada da caverna o brilho débil e bruxuleante que eu sabia ser a luz refletida de uma tocha que se aproximava. Corri para encontrar o clarão e, antes que pudesse compreender realmente o que tinha ocorrido, já estava deitado no chão aos pés do guia, abraçado nas suas botas e tagarelando inarticuladamente do jeito mais idiota e sem sentido, despejando minha história terrível e ao mesmo tempo cobrindo-o com declarações de gratidão, apesar de orgulhar-me de minha reserva. Por fim, acordei para algo próximo de minha consciência normal. O guia havia observado minha ausência com a chegada do grupo na entrada da caverna e a partir do seu próprio sentido intuitivo de direção passara a investigar minuciosamente os desvios logo à frente de onde ele havia falado comigo pela última vez, localizando meu paradeiro após uma busca de em torno de quatro horas.
            Assim que ouvi esse relato, senti-me encorajado com a luz e a companhia e comecei a refletir sobre a estranha fera que tinha ferido bem próximo dali no escuro. Sugeri que verificássemos, com a ajuda das tochas, que tipo de criatura fora minha vítima. Então voltei sobre meus passos, dessa vez com a coragem nascida da companhia, para a cena da minha experiência terrível. Logo divisamos um objeto branco sobre o chão, um objeto mais branco do que o próprio calcário reluzente. Avançando com cuidado, soltamos uma exclamação simultânea de espanto, pois de todos os monstros esquisitos que qualquer um de nós vira em vida, esse possuía um grau incomparável de estranheza. Parecia ser um macaco antropóide de grandes proporções, fugido talvez de algum show de feras itinerante. Seu cabelo era branco como a neve, algo sem dúvida devido à ação descorante de uma longa estadia no breu do confinamento de uma caverna, mas era também surpreendentemente magro, em grande parte sem pêlos, a não ser na cabeça, onde era de um comprimento e profusão que caía sobre os ombros com uma abundância considerável. O rosto estava voltado para o outro lado, visto que a criatura deitava quase diretamente sobre ele. A curva dos membros era bastante singular, o que explicava, entretanto, a alternação no seu uso que eu observara antes, e através da qual a fera usava algumas vezes todas as quatro patas para progredir e em outras ocasiões apenas duas. Das pontas dos dedos das patas, estendiam-se longas garras como as de uma ratazana. As patas não eram preênseis, fato que atribuí à longa permanência na caverna que, como havia mencionado antes, parecia evidente pela brancura impregnada e quase fantasmagórica tão característica de toda sua anatomia. Ele parecia não ter rabo.
            A respiração agora tornara-se bastante fraca, e o guia puxou a pistola com a intenção evidente de eliminar a criatura, quando um som repentino emitido por ela fez com que a arma caísse no chão sem ser usada. O som era de uma natureza difícil de se descrever. Não era como o timbre normal de qualquer espécie de símio conhecida, e me pergunto se essa qualidade antinatural não era resultado de um silêncio longo, continuado e absoluto, quebrado pelas sensações produzidas pela chegada da luz, algo que a fera não podia ter visto desde a sua primeira entrada na caverna. O som, que eu poderia tentar descrever como sendo um tagarelar inarticulado, seguia cada vez mais fraco.
            Então, de uma hora para outra, um espasmo fugidio de energia pareceu trespassar a carcaça da fera. As patas se mexeram convulsivamente e os membros se contraíram. Com um movimento reflexo, o corpo branco rolou para o lado de maneira que o rosto voltou-se para nossa direção. Por um momento fiquei tão aterrorizado com os olhos que se revelavam que não observei nada mais. Eles eram escuros, aqueles olhos, de um âmbar-negro, num contraste terrível com o cabelo e a pele cor de neve. Assim como os olhos de outros moradores das cavernas, eles eram afundados nas suas órbitas e inteiramente destituídos da íris. Quando olhei mais proximamente, vi que faziam parte de um rosto menos prógnato do que o de um macaco médio e infinitamente menos peludo. O nariz era bem-definido. Enquanto olhávamos pasmos para o quadro fantástico diante da nossa visão, os lábios grossos abriram-se e vários sons foram emitidos deles, após o que a criatura relaxou na morte.
            O guia agarrou a manga do meu casaco e tremia tão violentamente que a luz sacudia em espasmos, jogando sombras estranhas e rápidas sobre as paredes. Não fiz movimento algum e fiquei rigidamente parado com os olhos horrorizados fixos sobre o chão à minha frente.
            O medo deixou-me, e o assombro, a surpresa, a compaixão e o respeito sucederam-se no seu lugar, pois os sons emitidos por aquela figura ferida e agora estendida sobre o calcário nos contou a verdade aterradora. A criatura que eu matara, a fera estranha da caverna inescrutável, era, ou fora um dia um HOMEM!!!

21 de abril 1905.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

A Transição de Juan Romero

Antes de continuar com o conto sobre o Necronomicon, faremos uma pausa para mais uma obra de H.P. Lovecraft...



Dos eventos que ocorreram na Mina Norton nos dias 18 e 19 de outubro de 1894, não tenho vontade de falar. Um sentido de dever para com a ciência é tudo o que me impele a relembrar, nos últimos anos da minha vida, as cenas e os acontecimentos carregados de um terror duplamente agudo, pois não consigo defini-lo por completo. Mas antes de morrer acredito que deveria contar o que sei sobre a, digamos, transição de Juan Romero.
            Meu nome e origem não precisam ser registrados para a posteridade; na realidade, acredito que é melhor que não sejam, pois quando um homem subitamente migra para os Estados ou para as Colônias ele deixa o seu passado para trás. Além disso, o que eu fui um dia não é de forma alguma relevante para minha narrativa; salvo talvez o fato de que durante meu serviço na Índia eu ficava mais à vontade em meio aos professores nativos com suas barbas brancas do que com meus irmãos oficiais. Não foi pouco o que já tinha me aprofundado nos estudos da singular erudição oriental quando fui surpreendido pelas calamidades que levaram à minha vida nova no bem aceitar um nome – meu nome atual, que é bastante comum e não carrega significado algum.
            No verão e no outono de 1894 vivi nas vastidões melancólicas das Montanhas Cactus, empregado como um trabalhador comum na célebre Mina Norton, cuja descoberta por um velho garimpeiro alguns anos antes havia transformado a região próxima de um despovoado ermo num caldeirão fervilhando de vida ignóbil. Uma caverna de ouro que se encontrava nas profundezas abaixo de um lago de montanha enriquecera o seu descobridor muito além dos seus sonhos mais desvairados e agora era o sítio das amplas operações em túneis por parte da corporação para a qual ela fora finalmente vendida. Grutas adicionais haviam sido encontradas, e a produção do metal amarelo era extraordinariamente grande, de maneira que um exército enorme e heterogêneo de mineiros mourejava dia e noite nas numerosas galerias e buracos de pedra. O superintendente, um Sr. Arthur, seguidamente discutia a singularidade das formações geológicas, especulando sobre a provável extensão da cadeia de cavernas e estimando o futuro dos empreendimentos titânicos de mineração. Ele considerava as cavidades auríferas como sendo o resultado da ação da água e acreditava que a última delas logo seria escavada.
            Não foi muito depois da minha chegada e contratação que Juan Romero veio parar na Mina Norton. Integrante de um bando enorme de mexicanos rudes atraídos para lá vindos do país vizinho, ele chamou a atenção primeiro somente pelos seus traços, que apesar de serem claramente do tipo de um índio pele-vermelha eram, entretanto, extraordinários por sua cor clara e conformação refinada, sendo muito diferentes daqueles do “chicano” médio ou do Piute da localidade. O curioso era que, apesar de diferir tanto na massa de índios hispânicos e tribais, Romero não dava a menor impressão de ter sangue caucasiano. Ele não tinha o sangue do conquistador Castelhano, nem do pioneiro norte-americano, mas do Asteca antigo e nobre, que a imaginação trazia à lembrança quando o peão silencioso levantava de manhã cedo e olhava fascinado para o sol à medida que este se deslocava gradativamente acima dos montes a leste. Então ele esticava os braços na direção da esfera como se num rito cuja natureza nem ele compreendia. Mas, tirando seu rosto, Romero não sugeria nobreza de forma alguma. Ignorante e sujo, ele estava em casa em meio aos outros mexicanos morenos, tendo vindo da região mais pobre próxima dali (fato que me foi contado depois). Ele fora encontrado criança numa cabana de montanha feita de barro, sendo o único sobrevivente de uma epidemia que se espalhara mortalmente à sua volta. Perto da cabana, junto a uma fenda um tanto incomuns na pedra encontravam-se dois esqueletos recém-atacados pelos abutres e que eram presumivelmente o que restara de seus pais. Ninguém lembrava os nomes deles e logo foram esquecidos pelos outros, pois o desabamento da cabana de adobe e o fechamento da fenda na rocha por uma avalanche posterior realmente haviam ajudado a apagar até a cena da lembrança. Criado por um ladrão de gado mexicano que lhe dera o nome, Juan diferia pouco dos seus pares.
A ligação que Romero manifestou em relação à minha pessoa começou sem dúvida alguma por meio do anel hindu exótico e antigo que eu usava quando não estava envolvido no trabalho. Da sua natureza e como veio parar em minhas mãos não posso falar. Foi meu último vínculo de um capítulo da minha vida que se encerrou para sempre, e eu o tinha em altíssima estima. Logo observei que o mexicano de aparência estranha também se interessava por ele e o olhava com uma expressão que afastava qualquer suspeita de se tratar de mera cobiça. Os seus hieróglifos veneráveis pareciam estimular alguma lembrança tênue na sua mente inculta, mas curiosa, embora fosse impossível que tivesse contemplado algo parecido antes. Em poucas semanas após a sua chagada, Romero era como um criado fiel para mim; isso apesar de eu mesmo ser apenas um garimpeiro comum. Nossa conversação era necessariamente limitada. Ele sabia apenas algumas poucas palavras de inglês, enquanto deu para perceber que meu espanhol de Oxford era algo um tanto diferente do dialeto dos peões da Nova Espanha.
O evento que estou prestes a contar não foi precedido por grandes presságios. Apesar de o homem Romero ter-me interessado e apesar de o meu anel tê-lo afetado especialmente, acredito que nenhum de nós dois fazia idéia alguma do que estava para acontecer quando ocorreu a grande explosão. Considerações geológicas haviam pedido uma ampliação da mina diretamente abaixo da parte mais profunda da área subterrânea; e a crença do superintendente de que se encontraria somente uma rocha sólida levou à colocação de uma carga prodigiosa de dinamite. Romero e eu não tínhamos nenhuma ligação com este trabalho, razão pela qual o nosso conhecimento sobre as circunstancias extraordinárias que tinham ocorrido vieram dos outros. A carga, mais pesada talvez do que fora estimado, parece ter sacudido a montanha inteira. As janelas dos barracos na encosta do lado de fora estilhaçaram com o choque, enquanto os mineiros por todas as galerias próximas foram derrubados no chão. O lago Jewel, que ficava em cima da cena da ação, ficou ondulando como se num temporal. Ao investigarem o local, viu-se que um novo abismo escancarara-se infinitamente abaixo do sítio da explosão; um abismo tão monstruoso que uma corda que estava à mão não conseguia mensurá-lo e nem uma lanterna conseguia iluminá-lo. Desconcertados, os escavadores pediram uma reunião com o superintendente, que ordenou que uma metragem enorme de cordas fosse levada até o poço e, amarrando as pontas de uma corda na outra, fosse baixada sem parar até que se descobrisse o fundo.
Logo em seguida os trabalhadores pálidos notificaram o superintendente do seu fracasso. Firmemente, mas com respeito, eles exprimiram a sua recusa de voltar à fenda ou realmente trabalhar mais na mina até que ela fosse fechada. Algo além da sua experiência evidentemente os estava confrontando, pois até onde eles podiam avaliar o abismo era infinito. O superintendente não os censurou. Em vez disso, refletiu profundamente e fez planos para o dia seguinte. O turno da noite não entrou na mina.
Às duas da manhã, um coiote solitário na montanha começou a uivar sinistramente. De algum lugar dentro da área de trabalho um cão latiu em resposta; seja para o coiote, ou para outra coisa. Uma tempestade estava se formando em torno dos picos da cadeia de montanhas, e nuvens com formatos estranhos eram impelidas horrivelmente pelo vento, passando um trecho manchado pela luz celestial que marcava as tentativas de uma lua crescente brilhar através das várias camadas do vapor cirro-estrato. Foi a voz de Romero, vinda do beliche acima, que me acordou. Era uma voz excitada e tensa com alguma expectativa vaga que eu não conseguia compreender:
-Madre de Dios! El sonido, ese sonido, orga! Lo oyte? Señor, ESSE SOM!
Eu prestei atenção, perguntando-me de que som ele estava falando. O coiote, o cachorro e a tempestade, eram todos audíveis; a tempestade a essa altura preponderava sobre os outros à medida que o vento silvava mais e mais furiosamente. Flashes dos raios eram visíveis através da janela do barracão. Questionei o mexicano nervoso repetindo os sons que ouvira:
-El coyote? El perro? El viento?
Mas Romero não respondeu. Então começou a sussurrar como se maravilhado:
-El ritmo, señor, el ritmo de la tierra, ESSA VIBRAÇÃO ABAIXO DA TERRA!
E agora eu também ouvi; ouvi e arrepiei-me sem saber por quê. Bem abaixo, mas bem abaixo, havia um som – um ritmo, como o peão dissera – que, apesar de incrivelmente débil, ainda assim dominava até o cachorro, o coiote e a tempestade crescente. Não fazia sentido tentar descrevê-lo – pois ele era de tal forma que nenhuma descrição era possível. Talvez ele fosse como o pulsar das máquinas no recanto mais profundo de um grande navio cruzeiro ao percebê-lo do convés, entretanto ele não era tão mecânico, nem tão desprovido de um elemento de vida e consciência. De todas as suas qualidades, a sua distância para dentro da terra era o que mais me impressionava. Na minha mente passavam voando os fragmentos de uma frase de Joseph Granvil que Poe citava com um efeito tremendo¹:
-“... a vastidão, a profundidade, o caráter inescrutável do seu trabalho, que tem uma profundidade nele maior do que o poço de Demócrito.”
De repente Romero saltou do beliche, parando diante de mim para mirar atentamente o anel esquisito na minha mão e que cintilava estranhamente a cada flash dos raios, e então olhou fixamente na direção do poço da mina. Também me levantei e ambos ficamos parados sem nos mover por um tempo, forçando os ouvidos à medida que o ritmo misterioso parecia assumir cada vez mais uma qualidade vital. Então sem uma vontade aparente começamos a caminhar na direção da porta, cujo estrépito na ventania passava uma sugestão confortante de realidade terrena. O canto de salmos nas profundezas – pois esse era o som que ele parecia ser – cresceu em volume e clareza; e nos sentimos irresistivelmente excitados a sair para a tempestade e daí para a escuridão da fenda do poço.
Não encontramos nenhuma criatura viva, pois os homens do turno da noite haviam sido dispensados do trabalho, e estavam sem dúvida alguma no povoado Dry Gulch despejando rumores sinistros no ouvido de algum barman sonolento. Da cabana do vigia, entretanto, brilhava um quadro pequeno de luz amarela como o olho de um guardião. Perguntei-me vagamente como o som rítmico afetara o vigia; mais Romero caminhava mais rapidamente agora, e eu o segui sem parar.
Quando descemos o poço, o som abaixo se tornou cada vez mais complexo. Ele me pareceu terrivelmente como um tipo de cerimônia oriental, com as batidas de tambores e o canto de muitas vozes. Eu estivera como você já sabe, muito tempo na Índia. Romero e eu seguíamos sem hesitar através das galerias e descendo as escadas, cada vez mais próximos da coisa que nos fascinava, no entanto sempre deploravelmente desamparados, temerosos e relutantes. Num determinado momento, achei que tinha enlouquecido – isso foi quando, ao perguntar-me como nosso caminho estava iluminado na ausência de uma lanterna ou uma vela, percebi que o anel antigo no meu dedo brilhava com um fulgor sinistro, propagando um brilho descorado através do ar pesado e úmido à nossa volta.
Foi sem um aviso que Romero, após descer com a ajuda dos pés e das mãos uma das escadas largas, começou a correr e deixou-me sozinho. Algum tom novo e desvairado na batida dos tambores e no canto dos salmos, que eu percebia ligeiramente, o havia influenciado de uma maneira assustadora; e com um grito fora de si ele tomou a dianteira na corrida, mesmo estando desorientado com a escuridão da caverna. Eu ouvia os gritos estridentes que se repetiam à minha frente na medida em que ele tropeçava desajeitado pelos lugares com seus desníveis e descia enlouquecido com a ajuda das mãos pelas escadas perigosas. E mesmo assustado como eu estava, ainda assim mantive o suficiente da minha percepção para observar que a sua fala, quando articulada, não era de nenhum tipo conhecido por mim. Polissílabas ríspidas mas impressionantes haviam substituído a sua combinação costumeira de espanhol ruim e inglês pior ainda, e desses, apenas o grito seguidamente repetido de “Huitzilopotchli” parecia familiar. Mais tarde atribuí indiscutivelmente essa palavra ao trabalho de um grande historiador² - e senti um arrepio quando a associação me ocorreu.
O clímax daquela noite terrível foi complicado, mas relativamente breve, começando assim que eu cheguei à última caverna da jornada. Da escuridão imediatamente à minha frente irrompeu um guincho final do mexicano, que se associou a um estranho coro de sons que eu jamais poderia ouvir novamente e sobreviver a isso. Naquele momento, parecia que todos os terrores e monstruosidades escondidos da terra tinham se tornados articulados num esforço para subjugar a raça humana. Simultaneamente a luz do meu anel extinguiu-se, e vi uma luz nova brilhando no espaço abaixo alguns metros à minha frente. Eu chegara ao abismo, que incandescia vermelho agora e que evidentemente engolira Romero. Avançando, espiei sobre a beira daquele abismo que nenhuma corda conseguia mensurar e que agora era um pandemônio de chamas bruxuleantes e uma comoção hedionda. Num primeiro momento, então contemplei nada a não ser uma mancha agitada de luminosidade; mas então formas, todas infinitamente distantes, começaram a destacar-se da confusão, e vi – seria Juan Romero? – mas por Deus! Não tenho coragem de dizer o que vi! Algum poder dos céus, vindo para minha ajuda, apagou essa visão e os sons numa batida que poderia ser ouvida como se dois universos tivessem colidido no espaço. Sobreveio o caos, e reconheci a paz do esquecimento.
Eu mal sei como continuar, já que condições tão singulares estão envolvidas; mas vou fazer o melhor que posso, nem mesmo tentando distinguir entre o real e o aparente. Quando acordei, estava seguro no meu beliche, e o brilho avermelhado do amanhecer era visível na janela. Alguns metros adiante o corpo sem vida de Juan Romero encontrava-se estendido sobre uma mesa, cercado por um grupo de homens, incluindo o médico do campo. Os homens estavam discutindo a estranha morte de um mexicano enquanto ele dormia; uma morte aparentemente ligada de alguma forma com a descarga terrível do raio que caiu e sacudiu a montanha. Nenhuma causa direta era evidente, e uma autópsia não conseguiu mostrar qualquer razão para que Romero não estivesse vivo. Fragmentos que ouvi da conversa indicavam além de qualquer dúvida que nem Romero nem eu havíamos deixado o barracão durante a noite; que nenhum de nós estivera acordado durante a tempestade espantosa que passara sobre a cadeia de montanhas Cactus. Aquela tempestade, disseram os homens que se aventuraram até o poço da mina, causara um extenso desmoronamento e havia fechado completamente o abismo profundo que criara tanta apreensão no dia anterior. Quando perguntei ao vigia que sons ele ouvira antes do raio poderoso, ele mencionou um coiote, um cachorro e o vento da montanha que rosnava – nada mais. Eu tampouco duvido da sua palavra.
Com a volta ao trabalho, o superintendente Arthur chamou alguns homens que eram realmente de sua confiança para fazer algumas investigações em torno do local onde o abismo havia aparecido. Apesar de pouco entusiasmo com a idéia, eles a obedeceram, e uma perfuração profunda foi feita. Os resultados foram muito singulares. A parte de cima da fenda, quando foi aberta, não era de forma alguma mais densa; entretanto, a partir daí os perfuradores dos investigadores encontraram o que parecia ser uma extensão infinita de rocha sólida. Sem encontrar nada mais, nem mesmo ouro, o superintendente abandonou as suas tentativas; mas um olhar perplexo passa furtivamente pelo seu semblante quando ele senta para pensar na sua mesa.
Outro fato chama a atenção por sua singularidade. Logo após ter acordado naquela manhã depois da tempestade, observei a ausência inexplicável do anel hindu em meu dedo. Eu o estimava muito, mas mesmo assim senti uma sensação de alívio com o seu desaparecimento. Se um dos companheiros da mina o tinha pego, ele deve ter sido bastante esperto ao guardar o seu roubo, pois apesar de colocar anúncios e de uma busca policial, o anel nunca mais foi visto. De alguma forma duvido que ele tenha sido roubado por mãos mortais, pois me ensinaram muitas coisas estranhas na Índia.
Minha opinião sobre essa experiência varia de tempos em tempos. Durante o dia e na maior parte das estações do ano, sou capaz de pensar que a maior parte disso não passou de um sonho; mas algumas vezes no outono, em torno de duas da manhã, quando os ventos e os animais uivam sinistramente, uma insinuação maldita de uma vibração ritmada vem das profundezas inconcebíveis abaixo... E sinto que a transição de Juan Romero foi mesmo terrível.

16 de setembro de 1919.
¹Máxima de A Descent into the Maelstrom. (N.A.)
²Prescott, Conquest of Mexico. (N.A.)

domingo, 1 de maio de 2011

A coisa no luar

POSTO HOJE UM DOS CONTOS DE UM GÊNIO DO TERROR, O QUAL ME INSPIRO, E QUE DEVE SER INFLUÊNCIA PARA MUITOS AUTORES DO GÊNERO

Morgan não é um sujeito literário; na realidade ele não fala inglês com qualquer grau de coerência. Isso é o que me faz pensar sobre as palavras que ele escreveu, apesar de outros terem rido disso.
Ele estava sozinho na noite em que isso aconteceu. De repente um desejo invencível de escrever tomou conta dele, e, pegando uma caneta tinteiro na mão, escreveu o seguinte:
"Meu nome é Howard Philips. Moro na College Street, 66, em Providence, no estado de Rhode Island. No dia 24 de novembro de 1947- pois nem sei em que ano estamos agora-, peguei no sono e sonhei, e desde então não consigo acordar.
"Meu sonho começou num pântano úmido cheio de juncos que se encontrava sob um céu cinzento de outubro, com um penhasco escarpado de pedra incrustada de liquens que se erguia na direção norte. Impelido por alguma busca obscura, escalei uma fenda ou fissura nesse precipício saliente, observando enquanto subia as entranhas escuras de várias tocas temíveis que se estendiam de ambas as paredes até as profundezas do platô rochoso.
"Em vários pontos a passagem ficava coberta pelas partes sufocantes da fissura estreita; esses lugares eram muito escuros, impedindo dessa forma a percepção de tocas que podiam estar ali. Num desses espaços escuros percebi um acesso de pânico, como se uma emanação sutil e sem corpo do abismo estivesse engolindo meu espírito; mas a escuridão era grande demais para que eu percebesse a fonte do meu alarme.
"Por fim emergi sobre um platô rochoso coberto por musgos e com um solo pobre, iluminado pelo luar débil que tomara o lugar da órbita que expirava. Lançando olhares à minha volta, não contemplei nenhum ser vivo; mas senti uma vibração muito singular bem abaixo, em meio aos ruídos sussurrados do charco pestilento que eu deixara há pouco.
"Após caminhar por alguma distância, encontrei os trilhos enferrujados de um bonde e os postes comidos pelos vermes que ainda sustentavam o cabo sem energia e quase caindo. Seguindo esse trilho, logo cheguei num vagão amarelo com um corredor, numerado 1852 e de um tipo simples, com aberturas para os dois lados comum de 1900 a 1910. Ele estava desocupado, mas evidentemente pronto para partir; o bonde estava ligado ao cabo, e o freio a ar vibrava de vez em quando em baixo do assoalho. Subi nele e olhei em vão à minha volta pelo interruptor da luz- observando, ao fazer isso, a ausência da alavanca de controle, o que implicava consequentemente na breve ausência do motorneiro. Então sentei num dos assentos de costas para a frente do vagão. Dentro em pouco, ouvi um assobio na grama esparsa mais à esquerda e vi as formas escuras de dois homens pairando sob o luar. Eles usavam os bonés regulamentares da companhia ferroviária, e eu não poderia duvidar de que eram o condutor e o motorneiro. Então um deles farejou com uma intensidade notável, ergueu o rosto e uivou para a lua. O outro se jogou no chão apoiando-se nos quatro membros e começou a correr na direção do vagão.
"Dei um salto e corri que nem um louco para fora daquele vagão e por milhas sem fim do platô, até que a exaustão me forçou a parar- e fiz isso não porque o condutor tinha partido correndo com os quatro membros, mas porque o rosto do motorneiro era um cone branco simples que se afilava até um tentáculo com de sangue...
"Eu tinha consciência de que estava somente sonhando, mas a própria consciência disso não era agradável.
"Desde essa noite terrível tenho rezado só para despertar, mas isso ainda não aconteceu!
"Em vez disso me vi um habitante desse mundo dos sonhos horrível! Aquela primeira noite deu lugar ao amanhecer, e perambulei sem destino através dos pântanos solitários. Quando veio a noite, eu ainda perambulava, esperando despertar. Mas de repente abri caminho pelas relvas e vi diante de mim o antigo bonde- e de um lado um ser com um rosto cônico ergueu a cabeça e, sob a luz que emanava do luar, começou a uivar estranhamente!
"Isso tem sido o mesmo a cada dia. A noite sempre me leva para aquele lugar de horrores. Tentei não me mexer com a chegada do anoitecer, mas devo caminhar no meu cochilo, pois sempre me deparo com esse ser terrível uivando à minha frente sob o luar pálido, e me viro e saio correndo enlouquecido.
"Meu Deus! Quando vou acordar?"
Foi isso que Morgan escreveu. Eu iria até College Street, 66, em Providence, mas temo o que possa vir a encontrar por lá.
                                  (1934)

                                                                             H. P. Lovecraft