sexta-feira, 20 de maio de 2011

A Transição de Juan Romero

Antes de continuar com o conto sobre o Necronomicon, faremos uma pausa para mais uma obra de H.P. Lovecraft...



Dos eventos que ocorreram na Mina Norton nos dias 18 e 19 de outubro de 1894, não tenho vontade de falar. Um sentido de dever para com a ciência é tudo o que me impele a relembrar, nos últimos anos da minha vida, as cenas e os acontecimentos carregados de um terror duplamente agudo, pois não consigo defini-lo por completo. Mas antes de morrer acredito que deveria contar o que sei sobre a, digamos, transição de Juan Romero.
            Meu nome e origem não precisam ser registrados para a posteridade; na realidade, acredito que é melhor que não sejam, pois quando um homem subitamente migra para os Estados ou para as Colônias ele deixa o seu passado para trás. Além disso, o que eu fui um dia não é de forma alguma relevante para minha narrativa; salvo talvez o fato de que durante meu serviço na Índia eu ficava mais à vontade em meio aos professores nativos com suas barbas brancas do que com meus irmãos oficiais. Não foi pouco o que já tinha me aprofundado nos estudos da singular erudição oriental quando fui surpreendido pelas calamidades que levaram à minha vida nova no bem aceitar um nome – meu nome atual, que é bastante comum e não carrega significado algum.
            No verão e no outono de 1894 vivi nas vastidões melancólicas das Montanhas Cactus, empregado como um trabalhador comum na célebre Mina Norton, cuja descoberta por um velho garimpeiro alguns anos antes havia transformado a região próxima de um despovoado ermo num caldeirão fervilhando de vida ignóbil. Uma caverna de ouro que se encontrava nas profundezas abaixo de um lago de montanha enriquecera o seu descobridor muito além dos seus sonhos mais desvairados e agora era o sítio das amplas operações em túneis por parte da corporação para a qual ela fora finalmente vendida. Grutas adicionais haviam sido encontradas, e a produção do metal amarelo era extraordinariamente grande, de maneira que um exército enorme e heterogêneo de mineiros mourejava dia e noite nas numerosas galerias e buracos de pedra. O superintendente, um Sr. Arthur, seguidamente discutia a singularidade das formações geológicas, especulando sobre a provável extensão da cadeia de cavernas e estimando o futuro dos empreendimentos titânicos de mineração. Ele considerava as cavidades auríferas como sendo o resultado da ação da água e acreditava que a última delas logo seria escavada.
            Não foi muito depois da minha chegada e contratação que Juan Romero veio parar na Mina Norton. Integrante de um bando enorme de mexicanos rudes atraídos para lá vindos do país vizinho, ele chamou a atenção primeiro somente pelos seus traços, que apesar de serem claramente do tipo de um índio pele-vermelha eram, entretanto, extraordinários por sua cor clara e conformação refinada, sendo muito diferentes daqueles do “chicano” médio ou do Piute da localidade. O curioso era que, apesar de diferir tanto na massa de índios hispânicos e tribais, Romero não dava a menor impressão de ter sangue caucasiano. Ele não tinha o sangue do conquistador Castelhano, nem do pioneiro norte-americano, mas do Asteca antigo e nobre, que a imaginação trazia à lembrança quando o peão silencioso levantava de manhã cedo e olhava fascinado para o sol à medida que este se deslocava gradativamente acima dos montes a leste. Então ele esticava os braços na direção da esfera como se num rito cuja natureza nem ele compreendia. Mas, tirando seu rosto, Romero não sugeria nobreza de forma alguma. Ignorante e sujo, ele estava em casa em meio aos outros mexicanos morenos, tendo vindo da região mais pobre próxima dali (fato que me foi contado depois). Ele fora encontrado criança numa cabana de montanha feita de barro, sendo o único sobrevivente de uma epidemia que se espalhara mortalmente à sua volta. Perto da cabana, junto a uma fenda um tanto incomuns na pedra encontravam-se dois esqueletos recém-atacados pelos abutres e que eram presumivelmente o que restara de seus pais. Ninguém lembrava os nomes deles e logo foram esquecidos pelos outros, pois o desabamento da cabana de adobe e o fechamento da fenda na rocha por uma avalanche posterior realmente haviam ajudado a apagar até a cena da lembrança. Criado por um ladrão de gado mexicano que lhe dera o nome, Juan diferia pouco dos seus pares.
A ligação que Romero manifestou em relação à minha pessoa começou sem dúvida alguma por meio do anel hindu exótico e antigo que eu usava quando não estava envolvido no trabalho. Da sua natureza e como veio parar em minhas mãos não posso falar. Foi meu último vínculo de um capítulo da minha vida que se encerrou para sempre, e eu o tinha em altíssima estima. Logo observei que o mexicano de aparência estranha também se interessava por ele e o olhava com uma expressão que afastava qualquer suspeita de se tratar de mera cobiça. Os seus hieróglifos veneráveis pareciam estimular alguma lembrança tênue na sua mente inculta, mas curiosa, embora fosse impossível que tivesse contemplado algo parecido antes. Em poucas semanas após a sua chagada, Romero era como um criado fiel para mim; isso apesar de eu mesmo ser apenas um garimpeiro comum. Nossa conversação era necessariamente limitada. Ele sabia apenas algumas poucas palavras de inglês, enquanto deu para perceber que meu espanhol de Oxford era algo um tanto diferente do dialeto dos peões da Nova Espanha.
O evento que estou prestes a contar não foi precedido por grandes presságios. Apesar de o homem Romero ter-me interessado e apesar de o meu anel tê-lo afetado especialmente, acredito que nenhum de nós dois fazia idéia alguma do que estava para acontecer quando ocorreu a grande explosão. Considerações geológicas haviam pedido uma ampliação da mina diretamente abaixo da parte mais profunda da área subterrânea; e a crença do superintendente de que se encontraria somente uma rocha sólida levou à colocação de uma carga prodigiosa de dinamite. Romero e eu não tínhamos nenhuma ligação com este trabalho, razão pela qual o nosso conhecimento sobre as circunstancias extraordinárias que tinham ocorrido vieram dos outros. A carga, mais pesada talvez do que fora estimado, parece ter sacudido a montanha inteira. As janelas dos barracos na encosta do lado de fora estilhaçaram com o choque, enquanto os mineiros por todas as galerias próximas foram derrubados no chão. O lago Jewel, que ficava em cima da cena da ação, ficou ondulando como se num temporal. Ao investigarem o local, viu-se que um novo abismo escancarara-se infinitamente abaixo do sítio da explosão; um abismo tão monstruoso que uma corda que estava à mão não conseguia mensurá-lo e nem uma lanterna conseguia iluminá-lo. Desconcertados, os escavadores pediram uma reunião com o superintendente, que ordenou que uma metragem enorme de cordas fosse levada até o poço e, amarrando as pontas de uma corda na outra, fosse baixada sem parar até que se descobrisse o fundo.
Logo em seguida os trabalhadores pálidos notificaram o superintendente do seu fracasso. Firmemente, mas com respeito, eles exprimiram a sua recusa de voltar à fenda ou realmente trabalhar mais na mina até que ela fosse fechada. Algo além da sua experiência evidentemente os estava confrontando, pois até onde eles podiam avaliar o abismo era infinito. O superintendente não os censurou. Em vez disso, refletiu profundamente e fez planos para o dia seguinte. O turno da noite não entrou na mina.
Às duas da manhã, um coiote solitário na montanha começou a uivar sinistramente. De algum lugar dentro da área de trabalho um cão latiu em resposta; seja para o coiote, ou para outra coisa. Uma tempestade estava se formando em torno dos picos da cadeia de montanhas, e nuvens com formatos estranhos eram impelidas horrivelmente pelo vento, passando um trecho manchado pela luz celestial que marcava as tentativas de uma lua crescente brilhar através das várias camadas do vapor cirro-estrato. Foi a voz de Romero, vinda do beliche acima, que me acordou. Era uma voz excitada e tensa com alguma expectativa vaga que eu não conseguia compreender:
-Madre de Dios! El sonido, ese sonido, orga! Lo oyte? Señor, ESSE SOM!
Eu prestei atenção, perguntando-me de que som ele estava falando. O coiote, o cachorro e a tempestade, eram todos audíveis; a tempestade a essa altura preponderava sobre os outros à medida que o vento silvava mais e mais furiosamente. Flashes dos raios eram visíveis através da janela do barracão. Questionei o mexicano nervoso repetindo os sons que ouvira:
-El coyote? El perro? El viento?
Mas Romero não respondeu. Então começou a sussurrar como se maravilhado:
-El ritmo, señor, el ritmo de la tierra, ESSA VIBRAÇÃO ABAIXO DA TERRA!
E agora eu também ouvi; ouvi e arrepiei-me sem saber por quê. Bem abaixo, mas bem abaixo, havia um som – um ritmo, como o peão dissera – que, apesar de incrivelmente débil, ainda assim dominava até o cachorro, o coiote e a tempestade crescente. Não fazia sentido tentar descrevê-lo – pois ele era de tal forma que nenhuma descrição era possível. Talvez ele fosse como o pulsar das máquinas no recanto mais profundo de um grande navio cruzeiro ao percebê-lo do convés, entretanto ele não era tão mecânico, nem tão desprovido de um elemento de vida e consciência. De todas as suas qualidades, a sua distância para dentro da terra era o que mais me impressionava. Na minha mente passavam voando os fragmentos de uma frase de Joseph Granvil que Poe citava com um efeito tremendo¹:
-“... a vastidão, a profundidade, o caráter inescrutável do seu trabalho, que tem uma profundidade nele maior do que o poço de Demócrito.”
De repente Romero saltou do beliche, parando diante de mim para mirar atentamente o anel esquisito na minha mão e que cintilava estranhamente a cada flash dos raios, e então olhou fixamente na direção do poço da mina. Também me levantei e ambos ficamos parados sem nos mover por um tempo, forçando os ouvidos à medida que o ritmo misterioso parecia assumir cada vez mais uma qualidade vital. Então sem uma vontade aparente começamos a caminhar na direção da porta, cujo estrépito na ventania passava uma sugestão confortante de realidade terrena. O canto de salmos nas profundezas – pois esse era o som que ele parecia ser – cresceu em volume e clareza; e nos sentimos irresistivelmente excitados a sair para a tempestade e daí para a escuridão da fenda do poço.
Não encontramos nenhuma criatura viva, pois os homens do turno da noite haviam sido dispensados do trabalho, e estavam sem dúvida alguma no povoado Dry Gulch despejando rumores sinistros no ouvido de algum barman sonolento. Da cabana do vigia, entretanto, brilhava um quadro pequeno de luz amarela como o olho de um guardião. Perguntei-me vagamente como o som rítmico afetara o vigia; mais Romero caminhava mais rapidamente agora, e eu o segui sem parar.
Quando descemos o poço, o som abaixo se tornou cada vez mais complexo. Ele me pareceu terrivelmente como um tipo de cerimônia oriental, com as batidas de tambores e o canto de muitas vozes. Eu estivera como você já sabe, muito tempo na Índia. Romero e eu seguíamos sem hesitar através das galerias e descendo as escadas, cada vez mais próximos da coisa que nos fascinava, no entanto sempre deploravelmente desamparados, temerosos e relutantes. Num determinado momento, achei que tinha enlouquecido – isso foi quando, ao perguntar-me como nosso caminho estava iluminado na ausência de uma lanterna ou uma vela, percebi que o anel antigo no meu dedo brilhava com um fulgor sinistro, propagando um brilho descorado através do ar pesado e úmido à nossa volta.
Foi sem um aviso que Romero, após descer com a ajuda dos pés e das mãos uma das escadas largas, começou a correr e deixou-me sozinho. Algum tom novo e desvairado na batida dos tambores e no canto dos salmos, que eu percebia ligeiramente, o havia influenciado de uma maneira assustadora; e com um grito fora de si ele tomou a dianteira na corrida, mesmo estando desorientado com a escuridão da caverna. Eu ouvia os gritos estridentes que se repetiam à minha frente na medida em que ele tropeçava desajeitado pelos lugares com seus desníveis e descia enlouquecido com a ajuda das mãos pelas escadas perigosas. E mesmo assustado como eu estava, ainda assim mantive o suficiente da minha percepção para observar que a sua fala, quando articulada, não era de nenhum tipo conhecido por mim. Polissílabas ríspidas mas impressionantes haviam substituído a sua combinação costumeira de espanhol ruim e inglês pior ainda, e desses, apenas o grito seguidamente repetido de “Huitzilopotchli” parecia familiar. Mais tarde atribuí indiscutivelmente essa palavra ao trabalho de um grande historiador² - e senti um arrepio quando a associação me ocorreu.
O clímax daquela noite terrível foi complicado, mas relativamente breve, começando assim que eu cheguei à última caverna da jornada. Da escuridão imediatamente à minha frente irrompeu um guincho final do mexicano, que se associou a um estranho coro de sons que eu jamais poderia ouvir novamente e sobreviver a isso. Naquele momento, parecia que todos os terrores e monstruosidades escondidos da terra tinham se tornados articulados num esforço para subjugar a raça humana. Simultaneamente a luz do meu anel extinguiu-se, e vi uma luz nova brilhando no espaço abaixo alguns metros à minha frente. Eu chegara ao abismo, que incandescia vermelho agora e que evidentemente engolira Romero. Avançando, espiei sobre a beira daquele abismo que nenhuma corda conseguia mensurar e que agora era um pandemônio de chamas bruxuleantes e uma comoção hedionda. Num primeiro momento, então contemplei nada a não ser uma mancha agitada de luminosidade; mas então formas, todas infinitamente distantes, começaram a destacar-se da confusão, e vi – seria Juan Romero? – mas por Deus! Não tenho coragem de dizer o que vi! Algum poder dos céus, vindo para minha ajuda, apagou essa visão e os sons numa batida que poderia ser ouvida como se dois universos tivessem colidido no espaço. Sobreveio o caos, e reconheci a paz do esquecimento.
Eu mal sei como continuar, já que condições tão singulares estão envolvidas; mas vou fazer o melhor que posso, nem mesmo tentando distinguir entre o real e o aparente. Quando acordei, estava seguro no meu beliche, e o brilho avermelhado do amanhecer era visível na janela. Alguns metros adiante o corpo sem vida de Juan Romero encontrava-se estendido sobre uma mesa, cercado por um grupo de homens, incluindo o médico do campo. Os homens estavam discutindo a estranha morte de um mexicano enquanto ele dormia; uma morte aparentemente ligada de alguma forma com a descarga terrível do raio que caiu e sacudiu a montanha. Nenhuma causa direta era evidente, e uma autópsia não conseguiu mostrar qualquer razão para que Romero não estivesse vivo. Fragmentos que ouvi da conversa indicavam além de qualquer dúvida que nem Romero nem eu havíamos deixado o barracão durante a noite; que nenhum de nós estivera acordado durante a tempestade espantosa que passara sobre a cadeia de montanhas Cactus. Aquela tempestade, disseram os homens que se aventuraram até o poço da mina, causara um extenso desmoronamento e havia fechado completamente o abismo profundo que criara tanta apreensão no dia anterior. Quando perguntei ao vigia que sons ele ouvira antes do raio poderoso, ele mencionou um coiote, um cachorro e o vento da montanha que rosnava – nada mais. Eu tampouco duvido da sua palavra.
Com a volta ao trabalho, o superintendente Arthur chamou alguns homens que eram realmente de sua confiança para fazer algumas investigações em torno do local onde o abismo havia aparecido. Apesar de pouco entusiasmo com a idéia, eles a obedeceram, e uma perfuração profunda foi feita. Os resultados foram muito singulares. A parte de cima da fenda, quando foi aberta, não era de forma alguma mais densa; entretanto, a partir daí os perfuradores dos investigadores encontraram o que parecia ser uma extensão infinita de rocha sólida. Sem encontrar nada mais, nem mesmo ouro, o superintendente abandonou as suas tentativas; mas um olhar perplexo passa furtivamente pelo seu semblante quando ele senta para pensar na sua mesa.
Outro fato chama a atenção por sua singularidade. Logo após ter acordado naquela manhã depois da tempestade, observei a ausência inexplicável do anel hindu em meu dedo. Eu o estimava muito, mas mesmo assim senti uma sensação de alívio com o seu desaparecimento. Se um dos companheiros da mina o tinha pego, ele deve ter sido bastante esperto ao guardar o seu roubo, pois apesar de colocar anúncios e de uma busca policial, o anel nunca mais foi visto. De alguma forma duvido que ele tenha sido roubado por mãos mortais, pois me ensinaram muitas coisas estranhas na Índia.
Minha opinião sobre essa experiência varia de tempos em tempos. Durante o dia e na maior parte das estações do ano, sou capaz de pensar que a maior parte disso não passou de um sonho; mas algumas vezes no outono, em torno de duas da manhã, quando os ventos e os animais uivam sinistramente, uma insinuação maldita de uma vibração ritmada vem das profundezas inconcebíveis abaixo... E sinto que a transição de Juan Romero foi mesmo terrível.

16 de setembro de 1919.
¹Máxima de A Descent into the Maelstrom. (N.A.)
²Prescott, Conquest of Mexico. (N.A.)

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