quarta-feira, 29 de agosto de 2012

O Horror Sobrenatural na Literatura

A emoção mais forte e mais antiga do homem é o medo, e a espécie mais forte e mais antiga de medo é o medo do desconhecido. Poucos psicólogos contestarão esses fatos, e a sua verdade admitida deve firmar para sempre a autenticidade e dignidade das narrações fantásticas de horror como forma literária. Contra ela são desferidos os dardos de uma sofisticação materialista que se apega a emoções frequentemente sentidas e a eventos externos, e de um idealismo ingenuamente inspirado que reprova o motivo estético e reclama uma literatura didática que "eleve" o leitor a um grau apropriado de otimismo alvar. Mas em que pese toda a oposição, o conto de horror sobreviveu, evoluiu e alcançou notáveis culminâncias de aperfeiçoamento, fundado como é num princípio profundo e elementar cujo apelo, se nem sempre universal, deve necessariamente ser pungente e permanente para espíritos da sensibilidade requerida.
A atração do espectral e do macabro é de modo geral limitada porque exige do leitor uma certa dose de imaginação e uma capacidade de desligamento da vida do dia a dia. Relativamente poucos são suficientemente livres das cadeias da rotina do cotidiano para reagir às batidas do lado de fora da porta, e as descrições de emoções e incidentes ordinários, ou de vulgares desfigurações sentimentais desses incidentes e emoções, terão sempre precedência no gosto da maioria; com razão, talvez, já que o curso desses temas ordinários forma a parte maior da experiência humana. Mas os sensitivos estão sempre conosco, e às vezes um curioso lampejo de magia invade um recanto obscuro da cabeça mais empedernida; de modo que nenhuma dose de racionalização, de reforma ou de análise freudiana é capaz de anular completamente o arrepio do sussurro no canto da lareira ou da floresta solitária. É decorrência de uma conformação ou tradição psicológica tão real e tão fundamente arraigada na experiência mental quanto quaisquer outras conformações ou tradições da humanidade; coeva do sentimento religioso e intimamente relacionada a muitos dos seus aspectos, é parte por demais intrínseca da nossa herança biológica mais visceral para perder a forte influência que exerce numa minoria significativa, mesmo se não muito numerosa, da nossa espécie.

H.P. Lovecraft

terça-feira, 22 de maio de 2012

O Corvo, Edgar Allan Poe

Conto

Era uma vez eu refletia, à meia Noite erma e sombria a ler doutrinas de outro tempo em curiosos manuais, e exausto quase adormecido, ouvi de súbito um batido, tal qual houvesse alguém batido em meus umbrais.
-É um visitante que vem bater em meus umbrais é só isso e nada mais.
Ah! Claramente eu relembro! Era no gélido dezembro e o fogo agônico pintava o chão de sombras espectrais.
Ansiando em ver a noite finda, em vão a ler buscava ainda algum remédio a amarga, infinda, atroz saudade de Lenora – Essa mais bela que a aurora, a quem os céus chamam Lenora e nome aqui já não tem mais.
A seda rubra da cortina arfava em lúgubre surdina, arrepiando-me e evocando medos sepulcrais.
De susto o coração batia e a sossega-lo eu repetia: “É um visitante que pede abrigo em meus umbrais apenas isso e nada mais”
No momento em que me senti forte sem hesitar lancei a sorte: “Senhor ou então senhora perdoai-me se muito me esperais mais é que estava adormecido e tão débil o batido que mau podia ter ouvido alguém bater em meus portais assim de leve a horas tais” Escancarei então a porta: - Escuridão e nada mais.
Com a alma febril, eu novamente entrei no quarto e de repente o ruído recomeça e resoa em meus vitrais. Com certeza é na janela vamos ver o que esta nela e ao mistério dar finais. Abro a janela e eis que surgi, em tumulto, a esvoaçar, penetra um vulto: - é um corvo hierático e soberbo, egresso de eras ancestrais.
Como fidalgo passa, augusto, e, sem notar sequer meu susto, adeja e pousa sobre o busto que se encontra em meu umbrais bem sobre pórtico e lá se instala sobre a cabeça de Palas que se encontra em meus umbrais empoleirado e nada mais. – Sem crista embora digo ao corvo não tens pavor antigo e singular amigo que na noite me pede abrigo diga-me qual é teu nome o nobre corvo o nome teu no inferno torvo – e o corvo disse – Nunca mais.
O ar pereceu-me então mais denso e perfumado qual se incenso, ali descessem a espargir turibulários celestiais.
- Mísero – exclamo – Enfim teu Deus te dá, mandando os anjos seus a esquecimento para a saudades de Lenora.
Sorve o nepentes. Sorve-o, agora! Esquece, olvida essa Lenora!
E o corvo disse – Nunca Mais.
- Sejam palavras da nossa despedida ave de agouro – Ergo-me em gritos - volta de novo a tempestade aos negros antros infernais! Nem leve pluma de ti reste , que tal mentira ateste, deixa-me só neste ermo agreste, sai do busto em meus portais retira o bico que me fere o peito alça vôo e deixa meus umbrais – e o corvo disse – Nunca Mais!!.
Retira o bico que me fere o peito alça vôo e deixa meus umbrais – e o corvo disse – Nunca mais.
E lá ficou! Hirto e sombrio, ainda hoje o vejo, horas a fio, sobre o busto pálido de Palas, inerte, sempre em meus umbrais.
No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em sonhos, dorme e a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a suas sombras imortais, nelas que ondulam sobre a alfombra, está minha alma e presa à sombra não há de erguer-se nunca mais!!!
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segunda-feira, 14 de maio de 2012

Gótico Americano

A expressão "gótico americano", que costuma abranger de Washington Irving
(1783-1859) a Stephen King (1947) é mais uma etiqueta reconhecível e sonora do
que uma informação sólida e interpretativa sobre um grupo de autores.
Essa etiqueta costuma portanto abarcar a produção de contos fantásticos, de
vários subgêneros do já subgênero "terror", escrita por autores dos Estados
Unidos. "Gótico" porque tomado como leitura romântica de uma idéia de
"medieval", em que se possa imaginar um estilo de traços muito largos,
sugerindo com o nome um ambiente mental duvidoso, fruto de superstições e,
portanto, repleto de medos sobrenaturais .
Especialmente o século XIX gerou as narrativas "góticas" americanas, que
formaram a base dessa investigação do escabroso, que definiu até mesmo boa
parte do cinema dos Estados Unidos no século XX, como sabemos. 
Mas é interessante saber também que inicialmente os autores dos EUA pareciam
ter dificuldade em encontrar uma imaginação de "sombra e mistério" que os
diferenciasse do que já se fazia na Europa - principalmente em alemão e
francês - como o crítico Allan Lloyd-Smith escreve:
[Fenimore] Cooper se queixava em 1828 de que não havia materiais adequados
para escritores no novo país, "não há anais para historiadores ... não há
ficções obscuras para o escritor de romance". Sua impressão de dificuldade em
encontrar sustento imaginativo seria endossada por Hawthorne, que escreveu, em
1859, sobre a "ampla e simples luz do dia" e a "prosperidade sem graça" deste
país (...) Sem um passado feudal e as relíquias tão convenientes ao gótico
europeu, castelos, mosteiros e lendas, a paisagem americana parecia um lugar
improvável para tais ficções.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Por Mário Carneiro Jr. (Biblioteca Mal-Assombrada)

OS MAIS BELOS CONTOS TERRORÍFICOS DOS MAIS FAMOSOS AUTORES - SEGUNDA SÉRIE, vários autores


Lembram da resenha que fiz do livro Os Mais Belos Contos Terroríficos dos Mais Famosos Autores? Bem, este aqui é simplesmente a "continuação", com a mesma proposta e contos diferentes. Para alguns, este aqui é ainda melhor do que o primeiro. Eu acho que não chega a tanto (só a capa que é muito melhor, obviamente), mas concordo que esta coletânea é realmente extraordinária.

Sem qualquer introdução, o livro já começa bem com o conto O Retrato, de Washington Irving (conhecido autor de A Lenda de Sleepy Hollow e considerado por alguns como o inventor do gênero "conto"). Aqui, um grupo de convidados em um castelo começa a conversar sobre eventos sobrenaturais, quando o anfitrião revela que há um cômodo naquela construção que muitos consideram assombrada. Os convidados duvidam e um deles se dispõe a passar a noite no quarto. Vocês, leitores experientes, já devem ter desconfiado que a noite dele não será das mais tranquilas.

A segunda história, O Reflexo Perdido, é do conhecidíssimo E.T.A. Hoffman. O conto começa bem, narrando o encontro de um homem com uma pessoa amada e há muito tempo não vista; muita gente vai se identificar com a situação e com a dor do personagem ao descobrir que a pessoa está comprometida. Tomado pelo desespero, ele foge para um bar, onde irá conhecer um estranho homem que parece ter medo de espelhos, o que irá acarretar em fatos interessantes, mas não muito memoráveis. Para um Hoffman, achei fraquinho (mas é claro, ainda assim continua sendo um conto acima da média geral).

O terceiro conto é de Poe, outro que dispensa apresentações. O Demônio da Perversidade, na verdade, parece mais um ensaio (ou uma longa elucubração) sobre a perversidade humana e como ela nos aprisiona. Texto chatinho do grande mestre, que tem vários textos mais interessantes para figurarem em uma antologia como esta.

Uma Feliz Experiência de Dessecação, de Edmond About, é até bem interessante, narrando os esforços para ressuscitar um Coronel francês aparentemente morto por hipotermia. O final satírico provavelmente teve mais efeito na época do conto, mas ainda funciona. Pena que, como terror, também não convence.

Depois de três textos um tanto desanimadores, a coisa melhora com Uma Estranha Cama, de Wilkie Collins. Aqui, um jovem tem uma noite de sorte no jogo e, por estar ébrio, aceita passar a noite em um quarto no lugar onde estava jogando. Claro que, assim como no primeiro conto, sua estadia será atribulada, mas não da maneira que o leitor espera. Conto arrepiante, com um desfecho bastante adequado.

(A partir daqui vou pular alguns contos e comentar apenas os dignos de nota)

As Sombras da Noite, de Paul Marguerite, é uma sólida e arrepiante história de amor. Um jovem médico se apaixona pela filha de uma paciente, mas ao pedir a mão da garota em casamento (sem consultar a mesma... época interessante aquela!) descobre que a mesma é noiva de um oficial da marinha. No entanto, a moçoila demonstra algum interesse pelo rapaz, mas a chegada providencial do noivo com cara de poucos-amigos trará sérias consequências. Muito bom!

H. Heinz Ewers trás aquele que talvez seja o ponto alto do livro, A Aranha. Conto de terror basicamente psicológico e de contornos Freudianos, conta a história de um estudante de medicina que deliberadamente deseja morar em um quarto de hotel onde três homens já cometeram suicídio. Apesar da hesitação dos donos do hotel e da própria policia, o sujeito consegue seu intento. No quarto em si ele não repara nada de estranho, porém desenvolve uma estranha fixação pela vizinha da construção em frente, que sempre vê na janela, sem nunca se comunicarem. Obra-Prima é pouco para definir.

As Mãos Estranguladoras, de M.G. Moretti, é talvez uma das histórias com trama mais redondinha, desenvolvendo a narrativa com perfeição. Um homem recebe um bilhete pedindo ajuda, de um homem que o enganou no passado; sem entender bem o porquê, resolve atender o pedido (mais desejoso de confrontar o FDP do que qualquer outra coisa), e lá descobre que o salafrário está sendo assombrado por outro personagem em que também passou a perna. Assustador e excelente!

A Verdade das Lendas, de Emílio Carrère, quase poderia se passar por uma das narrativas supostamente reais de Ambrose Bierce, narrando minúsculos (e arrepiantes) acontecimentos envolvendo fantasmas ou previsões. Sucinto e eficiente.

Armiger Barclay trás uma aparição diferente das demais da coletânea (um tipo conhecido na literatura, mas nada mais posso dizer para não estragar a surpresa) em A Câmara da Morte. A história pode ser considerada um tanto clichê hoje em dia, mas sua antiguidade a absolve de ser uma cópia ou plágio involuntário, alçando-a à provável condição de precursora. Com momentos legitimamente amedrontadores, creio que será o preferido de muitos leitores.

O Cérebro no Frasco, de Norman Elwood Hammerston, já serviu de inspiração para um ou outro filme B dos anos 50. O ponto de partida inegavelmente trash sobre um cérebro mantido vivo em um laboratório é abordado de maneira elegante e deliciosa, e certamente irá agradar os amantes de filmes antigos de horror.

A Casa do Juiz é outra preciosidade, trazida por um autor desconhecido aí chamado Bram Stoker (se alguém souber outro livro que ele escreveu, favor me informar, ahauahau). O típico personagem que resolve buscar isolamento para estudar aluga um casarão, que pertenceu a um Juiz tirânico e injusto. O horror que ele viverá lá dentro será dos mais intensos do livro inteiro, do tipo que pode causar mal fisicamente. Polegares para cima pro Sr. Stoker.

Olhos Ambarinos é de outro mestre do macabro, Henry Kuttner (autor do clássico Os Ratos do Cemitério, já resenhado por aqui). Nem vou comentar nada para não estragar, só digo que é mais um texto obrigatório para quem gosta de literatura de horror.

Falando em olhos, o conto seguinte chama-se Os Olhos da Múmia. O autor Robert Block consegue a proeza de pegar um dos temas mais desinteressantes do gênero horror (bom, eu não gosto de múmias!) e montar uma trama surpreendente, provando que quando o escritor é bom, consegue tirar leite de pedra.

O Cálice de Ouro (não tem nada a ver com Harry Potter, rs), de Frank Gruber, acaba se revelando bem clichêzenta. Embora eu não possa criticar esse fato (oras, clichês não faltam em muitos dos contos que elogiei até aqui, sem contar o fator antiguidade), o problema é que o lugar-cumum desta história acaba não funcionando a contendo. Dispensável.

O Soro da Vida, de Paul S. Powers, narra as estranhas experiências de dois cientistas que tentam enganar a morte. No plano sobrenatural tudo parece se encaminhar bem, mas é uma pena que um mal muito mais terreno possa por tudo a perder. Legalzinho.

Tally Mason trás uma história sucinta que arrepia cada pelinho do braço, chamada O Último Disparo. Um andarilho expulso de um vagão de trem vai pedir ajuda em uma casa, onde é recebido por estranhos moradores. Novamente um clichê, mas que ao contrário de O Cálice de Ouro, aqui ele funciona.

O Preço da Cabeça é meu segundo conto favorito da obra. O autor, John Russel, conduz com maestria a estranha fidelidade que um nativo polinésio demonstra por seu amigo, um branco que há muito perdeu tudo que tinha e se entregou à bebida. Com ironia afiada, a história se desenrola lentamente, quase como as ondas das praias onde boa parte do conto se passa, para chegar ao desfecho absolutamente macabro.

O último conto (putz, acabei falando de quase todos!) chama-se O Cérebro Morto, e revisita um tema já mostrado em um conto anterior (e não, não estou falando de O Cérebro no Frasco). A comparação é inevitável e a presente história sai perdendo, mas ainda assim é interessante por mostrar uma abordagem diferente do mesmo tema, fechando o volume com dignidade.

Enfim, embora não seja tão memorável quanto o primeiro volume, Os Mais Belos Contos Terroríficos dos mais Famosos Autores - Segunda Série ainda é uma das melhores antologias do gênero que tive o prazer de ler (e olha que li MUITAS). Caso você encontre, não deixe de adquirir esta preciosidade.

Grande abraço, boa leitura!

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

TARJA PRETA

Esperando o torpor da inconsciência. Medindo o tamanho dos erros que, como sempre, são maiores que os acertos.
É vergonhoso admitir, mas por mais de uma vez a morte pareceu convidativa. Não é vaidade, é desespero. Seria uma desistência covarde, mas é uma alternativa, sempre será.
Nada precisa fazer sentido, a loucura torna-se uma certeza quase que concreta. De que vale a vida? Não sei o que fazer com ela, tudo parece em vão. Não quero acreditar que seja só o sofrimento, no entanto, a antítese é nula, onde quer que a procure não a encontro. Sombras, tudo são sombras, caricaturas, vazios, rascunhos.
O que é melhor para mim? Um gole de vida. Um suspiro profundo de paz.
Os membros vão perdendo a sensibilidade. O torpor se aproxima mansamente, embalando os pensamentos e fazendo com que a sensação de sono se torne inebriante e excitante.
O sono eterno pode ser assim. Quem negaria? Aproximando-se como um amigo, brando e pacífico, envolve os sentidos e nos leva apenas quando nos entregamos.
Confundo-me então, tudo parece não importar. Qualquer palavra dita desaparece no labirinto racional.
Almas vazias, mais vazias, que não se importam. Deveriam? Eu me importo? A vida é cada vez mais confusa, pensar sobre isso me enlouquece. Como não pensar? Deveria pensar menos, mas como uma porta que não mais se fecha, torna-se impossível fazer o caminho inverso e deixar apenas as coisas acontecerem. Sinto muito.
Removo os escombros em meu peito na busca incessante de encontrar alguma vida. O que mais encontro são corpos abandonados que perderam o sentido e ficaram perdidos em meio aos escombros. Alguma vida se acha, mas foge, aquela rotina antiga não vale mais a pena.
Os olhos pesam e, anestesiados, enxergam o mundo cinza e turvo. Com dificuldade levantam uma tonelada de cada vez na tentativa de permanecerem fiéis ao corpo que se entrega.
Entrego-me enfim, devolva minha vida.
                                                                              

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Charles Dexter Ward

Um dos mestres da literatura fantástica. Esse livro é sinistro desde o começo. O mais interessante é que nos prende a atenção e causa terror sem que os fatos sejam esclarecidos ou narrados claramente. A maneira intrigante e apavorante que o autor conta a história, ainda é para poucos escritores...


O aspecto de Charles agora tornara-se muito conturbado e atormentado e todos concordaram posteriormente que nesse período ele talvez desejasse prestar alguma declaração ou fazer uma confissão das quais se abstinha por mero terror. O hábito mórbido da mãe de ficar ouvindo à noite revelou que ele realizava saídas freqüentes, protegido pela escuridão, e a maioria dos psiquiatras mais acadêmicos concorda atualmente em culpá-lo pelos revoltantes casos de vampirismo que a imprensa relatou de modo tão sensacionalista na época, mas cuja autoria ainda não pode ser concretamente apontada. Esses casos, tão recentes e comentados que dispensam detalhes, envolveram vítimas de todas as idades e tipos a aparentemente concentraram-se em duas localidades distintas: a colina residencial e o North End, perto da residência dos Ward, e os bairros suburbanos do outro lado da linha Cranston perto de Pawtuxet. Notívagos e pessoas que dormiam de janelas abertas foram igualmente atacados, e as que sobreviveram para contar a história foram unânimes em descrever um monstro magro, ágil, que pulava, com olhos de fogo, que cravava seus dentes na garganta ou no antebraço e se satisfazia sofregamente.
O doutor Willett, que se recusa a datar a loucura de Charles Ward até mesmo nesta época, mostra-se cauteloso ao tentar explicar esses horrores. Ele afirma possuir certas teorias próprias e limita suas declarações positivas a um tipo peculiar de negação. “Não pretendo”, diz ele, “apontar quem ou o que acredito tenha perpetrado esses ataques e assassinatos, mas declaro que Charles Ward era inocente. Tenho razões para garantir que ele ignorava o gosto do sangue, como de fato seu contínuo definhamento físico, em função da anemia, e uma crescente palidez comprovam mais do que qualquer argumento verbal. Ward se envolveu com coisas terríveis, mas pagou por isto, ele jamais foi um monstro ou um vilão. Quanto ao que está acontecendo agora, nem gosto de pensar. Houve uma mudança e quero crer que o velho Charles Ward morreu com ela. Sua alma morreu, de qualquer maneira, mas o corpo tresloucado que desapareceu do hospital de Waite tinha outra.”
Willett fala com autoridade, pois frequentemente visitava a residência dos Ward para cuidar da senhora Ward, cujos nervos começavam a ceder por causa da tensão. O hábito de ficar ouvindo durante a noite gerara alucinações mórbidas que ela confiava com certa hesitação ao médico, o qual as levava na brincadeira em suas conversas com ela, embora o fizessem meditar profundamente quando estava sozinho. Esses delírios sempre diziam respeito aos sons fracos que imaginava ouvir do laboratório e no quarto de dormir da mansarda, e enfatizavam a ocorrência de suspiros e soluços abafados nas horas mais impossíveis. No início de julho, Willett ordenou que a senhora Ward passasse uma temporada em Atlantic City por tempo indefinido a fim de se recuperar e recomendou ao senhor Ward e ao tresloucado e esquivo Charles que escrevessem para ela somente cartas confortadoras. É provavelmente a essa fuga forçada e relutante que ela deve sua vida e sua saúde mental.

LOVECRAFT, H.P. O caso de Charles Dexter Ward. Porto Alegre: L&PM, 1997.